Sara abriu a mala mais uma vez, olhando fixamente para todas as peças que havia colocado lá dentro. Não levaria muitas roupas para o frio, pois a cidade para a qual estava se mudando fazia calor em quase todo o ano. Mas não queria esquecer de nada e queria estar preparada para todas as adversidades. Então, todas as vezes em que a fechava, o sentimento de que estava se esquecendo de algo muito importante surgia.
— Você está levando tudo o que necessita, Sara. Tenho certeza. E, se eu não estiver certa, mandaremos pelo correio.
Sara se jogou em cima da cama, exausta. Alice aproximou-se dela e começou a acariciar os seus cabelos.
— Ainda não acredito que está se mudando. Vou sentir muito a sua falta.
Sara ergueu o rosto, rindo.
— Até mesmo das minhas chatices?
— Até das suas chatices. Tenho medo de que você se esqueça da gente.
— Você acha que eu não vou te ligar todos os dias? Farei questão de fazer várias chamadas de vídeo, inclusive de madrugada, quando estiver na melhor parte de seus sonhos – ela fingiu estar séria. — Vai ter que ouvir a minha voz durante horas, enquanto eu descrevo todos os procedimentos cirúrgicos minuciosamente, acompanhada das reclamações sobre o calor e das minhas crises de cólica. Continuarei incrivelmente insuportável, Alice, mesmo de longe. Não vai sentir a minha falta.
— Talvez eu bloqueie o seu número algumas vezes por mês.
As duas se entreolharam e riram.
Alice começou a encarar o chão, pensativa. Sara não gostava muito daquele olhar. Geralmente, indicava que havia algo sério.
— O que foi, Alice?
— Antes de ir, você precisa ir conversar com ele.
— Ele não quer conversar comigo – suas expressões ficaram rígidas. — Já deixou isso bem claro.
— Ele não quer que você se mude. Você é a caçula, Sara. A filha que ele sempre adulou, protegeu... Ele não quer que vá para longe.
— Ele está assim porque acha que sou frágil, Alice. Ele tem pena de mim, isso sim! – Sara tentou não falar com tanta rispidez, mas foi quase inútil. — Olha, é uma oportunidade única e você sabe muito bem que não posso desperdiçá-la. Essas oportunidades não aparecem eventualmente. Vêm uma vez e pronto, acabou.
— Sei disso, Sara. Não estou lhe pedindo para ficar. Só quero que vá falar com o papai. Não quero que vá para o outro lado do país brigada com ele.
— Não estou brigada com ele.
— Vocês não estão conversando.
— Ele não está conversando comigo.
— Porque você nunca gritou com ele antes. Preste atenção em como você vem agindo nos últimos anos. Você tem se estressado com muita facilidade, se distanciado de todos nós... Ele nunca teve culpa no que aconteceu, mas você faz parecer que sim.
Sara levantou-se, irritada, e encarou a irmã.
— Tudo bem, Alice. Eu vou. Mas, se estiver pensando que vou pedir desculpas para ele, está enganada. E, se ele não quiser conversar comigo, não vou insistir.
— Sara...
Mas já era tarde. Sara havia saído a passos duros.
Alice conhecia muito bem a irmã, mas nunca a havia visto agir daquela forma. Desde que fora largada pelo noivo, há cinco anos, Sara começou a agir como se todos tivessem culpa pelo desastre, ou, pior, como se ela fosse a própria culpada. Sara era meiga e sensível na maior parte do tempo, às vezes muito mais prestativa do que qualquer pessoa que conhecia, e nunca havia desrespeitado o pai ou a mãe. Desde pequena, recebera muita atenção do homem, que nunca escondeu a predileção pela garota. Mas isso, de maneira muito impressionante, não incomodava nenhum pouco Alice ou Cris. Os dois nunca foram calmos ou gentis o suficiente, nem mesmo bons filhos para que recebessem qualquer atenção especial ou elogios. Pelo contrário, quando criança, Alice quase sempre ficava de castigo por quebrar a vidraça dos vizinhos ou por ameaçar as crianças do bairro. Melhorou um pouco no final da adolescência, quando começou a trabalhar em um posto de saúde e teve que lidar com as pessoas.
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O Filme das Nossas Vidas
SpiritualSara, uma jovem inteligente e obstinada, foi abandonada pelo noivo no dia do casamento e acabou criando uma barreira que a coloca em uma confusão emocional sempre que está diante de um desafio. Do outro lado do país, o economista Santiago, que está...