Sara sentia que tudo o que fazia era estudar. Acordava todos os dias às 4h da manhã e estudava até às 7h. Depois, se aprontava e ia para a faculdade e lá ficava durante toda a manhã. À tarde, ia para os hospitais da cidade fazer como parte da grade da faculdade. Analisava eletrocardiogramas, taxas de bilirrubina e hemogramas. Às vezes, realizava pequenas excisões de cistos e granulomas, e, se tivesse sorte, acompanhava apendicectomias e colecistectomias. Tinha professores excelentes que a auxiliavam, mas ela queria um pouco mais de ação, sair mais da parte teórica, principalmente quando adormecia por cima dos livros.
À noite, quando retornava para casa, apenas tomava banho e seguia para o quarto, voltando a estudar. Mal tinha tempo para comer e quase não via Ágata e Beto. Tinha que manter a nota acima de oito. A única pessoa com quem conversava frequentemente era Dominique, que compartilhava das mesmas frustrações que ela e era o seu maior apoio.
A amizade entre as duas havia se consolidado nas primeiras duas semanas. Após uma intensa série envolvendo provas orais e testes práticos surpresa, uma encontrou na outra o estímulo necessário para que não desistissem e conseguissem notas boas. Em uma sala com quase trinta estudantes, elas eram as únicas que demonstravam ter criado um verdadeiro vínculo de amizade e, a cada dia que se passava, mais se conheciam e encontravam similaridades e discrepâncias em suas vidas.
Após analisar e avaliar o décimo quarto caso clínico da noite, Sara fechou os olhos e tentou conter o cansaço, esfregando-os e dando leves tapas no rosto. Mal ouvia os passos e conversas do casal, que a respeitava completamente, dando-lhe toda a privacidade de que precisava. Nas poucas horas que tinha para dormir, ela sentia que a sua cabeça não fazia mais parte do corpo, como se fosse pesada o suficiente para não conseguir erguê-la nunca mais. Tinha repulsa quando ouvia o despertador e não sabia se ainda era capaz de manter um diálogo com alguma pessoa normal, que não envolvesse doenças, diagnósticos e tratamentos.
Quando o celular tocou, ela levantou a cabeça, assustada.
— Sara? – Ouviu, assim que atendeu.
— Alice! Quanto tempo! – Falou sorridente.
— Como está? Já sinto saudades! São quase dois meses longe de casa. Quero notícias de como estão as coisas por aí. Você prometeu ligar todos os dias, mas não temos notícias suas há... uma semana?
— Ei, calminha, Alice – Sara riu ao telefone, levantando-se da cadeira e indo para a cama. — Está tudo bem por aqui. Eu queria ligar todos os dias, mas simplesmente não tenho tempo! Estão sugando toda a minha energia. É como se fossem um bando de vampiros, sabe? Mas eu não tenho sangue o suficiente para oferecer!
— Mas você está feliz? Está arrependida? Se quiser, nós podemos te trazer de volta. É só nos dizer. Estamos todos com saudade!
Sara riu novamente.
— Sim, Alice, estou feliz. E não, não estou arrependida e nem quero voltar. Ao menos, não antes de terminar aqui – ela olhou para a pilha de livros e outros materiais e fez careta. — Como estão todos?
— Estão bem. O Cris conseguiu um emprego naquela fábrica de embalagens. Começou anteontem. Está indo e voltando todos os dias na van da empresa. A mamãe começou um curso gratuito de pintura. Já temos dezenas de panos de prato com desenhos de frutas e acho que teremos muito mais, porque ela não para de fazê-los. Falei para ela começar a vender. Ela tem talento e a renda extra ajudaria.
— Que ótimo, Alice! E o papai?
Houve um breve instante de silêncio.
— Vendeu o carro na semana passada. Mas não se preocupe. Ele não está chateado.
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O Filme das Nossas Vidas
SpiritualSara, uma jovem inteligente e obstinada, foi abandonada pelo noivo no dia do casamento e acabou criando uma barreira que a coloca em uma confusão emocional sempre que está diante de um desafio. Do outro lado do país, o economista Santiago, que está...