Capítulo 1 - Lola Witt

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Quando acordei, senti meu rosto quente, enquanto um clarão me envolvia. Podia sentir o cheiro do ar ameno e ouvir o canto dos pássaros, uma trilha sonora melancólica na quietude da manhã. Abri os olhos, mas logo de imediato os fechei; a forte luz do sol que se expandia pelo meu quarto fizera meus olhos arderem. Era pra eu ter me acostumado com isso, já que eu sempre deixava aberta a janela do meu quarto.

Nasci em uma cidadezinha que mais parecia um velho vilarejo — chamada Riverdown, que ficava em algum lugar próximo de Spokane, Washington — para muitas pessoas era um grande mistério sua localização exata. Uma cidade chuvosa e pacata, onde o assalto e vandalismo quase não existiam. Poderíamos dormir com as portas e janelas abertas sem nos preocupar que alguém pudesse entrar e nos fazer algum mal enquanto dormíamos. Era uma espécie de paraíso escondido almejado por muitos.

Levantei-me da cama e pairei em direção à janela, e num só movimento puxei e fechei as cortinas, mas mesmo assim um fio pálido de luz do amanhecer continuou existente, roçando entre as cortinas cor de salmão. E então andei em direção ao banheiro, joguei água fria no rosto, escovei os dentes e depois fiz o que sempre fazia: encarar uma garota no espelho, de olhos verdes, pele branca como marfim, cabelos castanho-claros quase louros e com uma espinha de pus brilhante no meio da testa. É, esse era meu reflexo. Sou eu...

Eu era o tipo de garota complicada e cheia de defeitos, confusa, mas de bom coração. Ou quase isso. Sabia que algum dia, com a minha série de defeitos e imperfeições, me tornaria alguém melhor, apesar das ondas de problemas que eu provavelmente ainda teria no decorrer da minha vida. Prazer, sou Lorraine Witt, mas todos me chamam de Lola.

Depois de bater um papo com meu reflexo no espelho, saí do banheiro e fui até o guarda-roupa, onde tinha um retrato do meu pai nos fundos. Ele morreu quando eu tinha aproximadamente sete anos de idade, minha mãe me disse que ele não sobreviveu a um acidente de carro, onde seu automóvel teria colidido com um caminhão a cem quilômetros por hora, mas eu duvidava disso, mesmo não sabendo explicar exatamente o porquê, sei lá, qualquer coisa que saía da boca de Helen me deixava irritada ou desconfiada. Era sempre difícil acreditar nela.

Peguei minhas roupas e fechei a porta com força demais. Vesti uma simples blusa branca, com um moletom turquesa por cima, uma calça jeans azul e tênis All Star preto. Logo depois peguei minha mochila de cima da mesinha de cabeceira e desci pelos degraus da escada que levavam até a cozinha. Eu poderia até ter começado o dia bem, mas ele se tornaria um saco após eu ver o rosto oleoso de minha mãe.

— Bom dia, filha — disse ela.

— Oi — falei, um tanto apática.

A mesa estava cheia. Havia algumas frutas, sanduíches, bacon frito, panquecas caseiras regadas ao molho de mirtilo e sucos em embalagens decorativas. Peguei um sanduíche Monte Cristo e uma caixinha de suco de laranja, e os coloquei dentro da minha mochila — eu raramente tomava meu café da manhã em casa.

— Nathan já acordou? — Eu perguntei.

— Ahn... sim, ele está em seu quarto, se recuperando. Não sei se já está pronto para voltar à escola hoje.

Eu assenti com a cabeça e saí da cozinha quase correndo, pegando o corredor estreito à direita. O quarto de Nathan era o último.

Aproximei-me e abri a porta devagar e tão logo vi um garotinho pequeno demais para seus oito anos, sob as cobertas da cama, assistindo a algo na tevê.

— Bom dia, Nathan! — disse, quase cantarolando.

Ele levantou da cama em um salto quando ouviu o som da minha voz.

— Lola! — exclamou ele. — Minha maninha favorita!

Favorita? — repeti. — Mas sou a única irmã que você tem.

Ele não disse nada, apenas caiu na gargalhada, e então correu para cima de mim, me abraçando com toda a força que lhe restava, como se não nos víssemos há muito tempo. Sentamos na cama e olhamos um para outro. Ele estava magro, com o rosto pálido e os olhos fundos, resultado de uma virose que havia pegado há alguns dias. Desde então passara mais tempo em casa, acamado, que na escola.

— Você não vai para escola hoje garotinho?

— Ainda estou muito doente... — ele fez um biquinho.

Semicerrei os olhos e bradei:

— Você é um péssimo mentiroso, Nathan!

Ele se entregou com um sorriso. Logo comecei a fazer cócegas em sua barriga e inevitavelmente ele caiu de novo na gargalhada. Minutos depois dos ataques de riso, o pequeno Nathan suspirou profundamente, tentando se recompor o mais depressa possível.

Dei um beijo em sua testa e me despedi.

— Agora tenho que ir, Nathan...

Ele fez novamente uma carinha triste.

— Mas já? Não pode chegar mais tarde hoje na escola? — perguntou ele. Assista desenho comigo, por favor!

— Infelizmente não, Nathan. Eu não posso continuar chegando atrasada, corro o risco de levar outra advertência — expliquei-lhe. — Desculpe-me, mas eu prometo assistir Os Imaginários hoje à noite com você.

— Hum... era visível ainda seu olhar tristonho. — Tudo bem então.

Levantei-me da cama dando um beijo em sua bochecha, mas antes de sair do quarto eu sussurrei para ele:

— Até mais, Nathan. — Cerrei os olhos novamente e encolhi os lábios. — E vá logo se arrumar para a escola!

Ele apenas abriu outro sorriso e falou:

— Tá bom, tá bom.

Contudo, ele logo voltou a assistir seu programa na tevê, e eu acabei desistindo, deixando essa tarefa para Helen resolver.

Andei pelo corredor claro e vazio de minha casa, voltando para a cozinha. Olhei para o relógio na parede. Eram 7h48. Não estava atrasada, mas também não estava muito longe de estar. Antes de sair pela porta da frente, escutei algo como "Tchau, filha. Tenha uma boa aula!", mas eu fingi não ter ouvido nada.

Chegando à parada de ônibus, me deparei com alguns estudantes do meu colégio, só que eu não falava muito com eles. Existiam poucas pessoas naquela escola que eu considerava amigas.

Não demorou dez minutos e o ônibus surgiu no início da curva à esquerda. As rodas gastas deslizaram sobre o asfalto áspero até parar a poucos metros de onde eu estava.

Entrei e me sentei em um dos bancos de trás, abri minha mochila e peguei meus fones de ouvidos e o sanduíche. Dei algumas mordidas e logo fiz uma cara feia. Não estava nada bom. Mas eu já esperava por isso, já que Helen era um tanto péssima na cozinha. Qual é! É basicamente só pôr presunto e queijo no pão e colocar na frigideira, e nem isso você consegue fazer direito, eu sempre lhe dizia isso. Não sabia exatamente o porquê, mas eu ainda continuava comendo os sanduíches Monte Cristo de minha mãe. Talvez fosse na esperança de que algum dia eles fossem bons? Não sabia dizer ao certo. Era bem mais provável que eu nunca ficasse satisfeita com nenhuma das coisas que Helen fizesse. Havia um motivo, é claro, mas eu não gostava de pensar muito nele.

Pus os fones em meus ouvidos, selecionei a playlist de rock clássico e apertei play no meu celular.

— Sanduíche de merda... — murmurei baixinho.

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