Ao sair do Portal de Azrael, me deparei com uma noite de lua cheia. Ergui os olhos e quase perdi a respiração, deslumbrada; o céu noturno estava esplendorosamente coberto de estrelas, de uma forma que eu jamais vira. Olhando para a floresta à minha volta, compreendi. Sem nenhuma cidade nas proximidades para atrapalhar o céu com sua luz, as estrelas dominavam a noite sem concorrência.
— Onde estamos? — perguntei, mas ninguém respondeu.
— Tem certeza que estamos no lugar certo? — perguntou Priam a Christopher.
— Sim — ele respondeu. — Estamos em algum lugar no Arizona. Temos de chegar à cidade mais próxima.
— Certo.
Caminhamos por mais de meia hora em meio à mata densa, transformando nossas mãos em garras para retirar os galhos e folhas de nosso caminho. Estávamos quase sem fôlego quando nos vimos adentrar uma planície. Uma pequena fazenda, o tipo de lugar perfeito para refazer as energias. A casa que havia ali tinha um aspecto desamparado, com cortinas escuras e as portas do estábulo fechadas, mas não dava para confiar que não tinha ninguém. Algumas vacas e bois rondavam a região, mugindo e ruminando, como se mascassem chiclete.
Foi então que, repentinamente, eu senti algo que eu não sentia há algum tempo, apesar de saber que não era exatamente igual a antes. Não era dor, era apenas uma fisgada em meu Estigma. O formigamento deslizava vagarosamente sobre os espinhos e galhos da flor em minhas costas. É claro que eu sabia o que aquilo significava, e isso me apavorou.
— Sentiram? — perguntou Priam.
Faith e Christopher balançaram a cabeça positivamente.
— Captamos frequências de origem demoníaca — murmurou Christopher para mim, como se eu também não fosse semianjo. — Há alguma Entidade pelas redondezas. Esteja pronta para possíveis ataques.
De repente, uma hipótese surgiu em minha mente. As fortes dores que eu sentia em minhas costas não eram apenas o processo de iniciação do meu Estigma. Eu também as sentia quando alguma Entidade estava próxima de mim. Lembrei-me de sair da escola e sentir isso pela primeira vez; será que era Tyler? Será que ele já estava possuído quando nos falamos aquele dia ou tudo ocorreu somente depois? Eu não sabia, e nem fazia mais muita questão de saber a verdade.
Assenti para Christopher.
Vi um grupo de bois e vacas evacuar da fazenda, nos encarando enquanto nos aproximávamos.
— Há algo errado... — sussurrou Faith.
Uma vaca aproximou-se de mim, e por um momento, seus olhos fitaram os meus. Eram inteligentes demais para um animal irracional. Eu a toquei sem hesitar. Estranhei que sua pele era murcha, mas, ao mesmo tempo, áspera como uma barba malfeita. Então foi que seus olhos brilharam, transformando-se em dois enormes poços vermelhos de lava fumegante, que escorriam derretendo sua face.
— LOLA! — gritou Priam.
A vaca explodiu em mil pedaços, e com a força do impacto, fui arremessada para longe. Aterrissei numa rocha com um baque forte e doloroso. Em seguida, senti algo me puxar para trás de um arbusto. Tentei me libertar, gritar, mas alguém tapou minha boca. Eu tentei ver quem ou o que era, mas minha visão estava embaçada e desorientada. Daí eu vi o rosto ríspido de Faith.
— Shhh! Fique quieta, garota!
Solte-me, eu tentei gritar, mas o som saiu abafado, pois a mão de Faith ainda permanecia sobre minha boca. Ela continuou a me arrastar pelo chão atrás dos arbustos, até que resolveu finalmente soltar meus braços. Desabei sobre o capim lamacento. Levantei rapidamente.
Olhei ao meu arredor e vi apenas uma multidão de vacas mugindo e correndo para todos os lados. Uma forte luz atravessou as folhas do arbusto e atingiu meus olhos, e por um momento perdi totalmente a minha visão.
— Faith! — gritei, desesperada.
Estou cega!
— Tente não respirar — eu a ouvi dizer, tão distante que mal consegui ouvi-la.
Mais ninguém apareceu para me acudir.
Escutei novamente o som de uma explosão. Tentei tapar os meus ouvidos, mas uma força sinistra me puxou contra o capim, fazendo-me cair de frente. Minha cabeça girou e meus pulmões começaram a arder quando inalei algo... era tão forte que eu sentia que estavam em chamas.
Por um rápido momento em que meus olhos piscaram, pude ver e sentir uma força sobrenatural me arrastar novamente para os arbustos.
Com a visão ainda turva, olhei na direção de onde eu fui arremessada. Vi muitos restos bovinos, órgãos e vísceras frescas e o vapor subindo, como de um pudim recém-cozido. Assisti Priam e Christopher lutarem contra uma criatura assustadora. Tinha mais de três metros de altura, seu corpo todo era em carne viva, borbulhando como uma sopa quente. No lugar de veias, havia magma, no lugar do tórax, piroclastos. Eu reconheci seus enormes olhos vermelhos fumegantes.
O demônio começou a exalar fogo pela boca — as chamas que ele expelia era uma mistura de negro e laranja —, como um dragão. Vi Priam e Christopher correrem para trás de uma rocha, escondendo-se. Mas tão logo perceberam que a mesma também estava derretendo e rapidamente trataram de sumir diante do arbusto mais próximo.
— Priam... — murmurei, mas eu mal ouvi minha voz.
E a insistente força sobrenatural me arrastou para longe dali.
Uma névoa amarelada flutuava sobre meu corpo e adentrava meus olhos e narinas. Eu tentei segurar em algo, mesmo que ainda não estivesse enxergando muito bem. Eu tentei fugir, mas a névoa era persistente, continuava a me segurar e arrastar-me. E não havia mais nada que eu pudesse fazer para impedi-la. Fechei os olhos.
E, novamente, ouvi o barulho de algo explodindo, mas dessa vez o estrondo foi acompanhado por choques elétricos e um grito gorgolejante e ensurdecedor. Meus ossos latejaram quando me virei de lado e fiquei em posição fetal por um instante, tremendo. Pude sentir a vibração de um grupo de vacas passarem ao meu lado, a poucos centímetros de meu corpo sujo e desamparado. O mal desabou sobre mim novamente, várias e várias vezes, e eu apaguei em todas elas.
Um tempo depois, pude ouvir murmúrios.
— Ela está reagindo? — perguntou alguém.
— Que droga, Faith! Eu disse para você protegê-la.
— Eu não vim aqui para ser babá de ninguém! — ela rebateu. — Não se esqueça de que se não fosse por mim, vocês dois estariam mortos.
Eu comecei a tossir violentamente, curvando meu corpo como se fosse vomitar. Abri meus olhos lentamente até eles encontrem os de Priam, atenciosos.
— Priam!
Eu pulei para abraçá-lo, e ele felizmente retribuiu meu abraço.
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Entidades
RastgeleE se anjos e demônios realmente existissem? E se os anjos descessem dos Céus, se apaixonassem por humanos e tivessem filhos? A jovem Lola Witt descobre da pior forma possível que seres malignos existem, e que seu pai, um dia, fora um anjo. Isso faz...