1ª dose

4.1K 257 203
                                    

Um ano depois

Se você tem certeza de que superou, espera até vê-lo novamente.

Enquanto Jessica tentava dar um jeito no seu uniforme cinza e azul totalmente sem graça da rede pública do Rio de Janeiro, eu retirava os inúmeros papéis de bala que surgiram magicamente em minha mochila lilás. O calor invadiu meu pequeno quarto, tornando o ambiente ainda mais quente e abafado. Meu ventilador, no três, fazia um esforço ridículo para espantar o ar quente, girando preguiçosamente de um lado para o outro. Tinha acabado de tomar banho, mas já estava suada novamente.

— Sabe qual é o meu sonho? — Jessica perguntou de repente, com um tom de indignação. — Que voltassem a fazer uniforme pra cada escola. Sério, só porque a gente estuda em escola pública, temos que parecer iguais a todo mundo? — Ela fez uma pausa dramática, me olhando com frustração. — Por que justo na nossa vez, Ju? O uniforme da nossa escola era tãããão lindo! Por que logo agora? — pergunta, em um tom manhoso.

— Somos azaradas, eu acho — constatei, enquanto fazia uma careta ao encontrar um lápis quebrado e mais embalagens de jujuba do que eu podia contar na minha mochila. — Eu deveria parar de comer tanto doce — murmurei para mim mesma, sem intenção de que ela me escutasse

— Parece até castigo. Eles devem pensar: "Ah, você estuda em colégio público? Então toma uma camisa igual a de todo mundo e morra de inveja dos colégios particulares com seus uniformes perfeitos com os nomes escritos com uma fonte enorme e maravilhosa". — Ela revira os olhos, frustrada. — Aff!

— E o pior é que é feia — rio, pegando minha camisa em cima da cama e colocando-a. Diferente de Jessica, não faço muita questão de deixá-la um pouco mais agradável. Acho feia de qualquer jeito.

— Mudando de assunto — diz, com aquele sorriso que conheço muito bem, os olhos brilhando de animação. — Esse fim de semana vai ter festa aqui, e nós vamos — diz, toda animada, fazendo um nó na sua camisa e escondendo-a por dentro da calça jeans de cintura alta. — Eles deveriam dar uma olhada em algum site de tamanhos, pois esse M está mais para GG. É muito grande e olha que eu nem sou magrinha.

— Seu corpo incrível, e quanto à festa... não vou — respondi, tentando desviar o assunto enquanto pegava uma xuxinha da mesma cor da minha mochila, na tentativa de ajeitar o cabelo que já começava a colar no pescoço por causa do calor.

Jessica saiu da frente do espelho como se eu tivesse dito a coisa mais absurda do mundo e começou a falar que, depois do Carnaval, essa era a segunda festa que ela mais esperava no ano. Lançou uma lista de motivos — muitos deles desnecessários — explicando por que eu precisava ir. E claro, não perdeu a oportunidade de me lembrar que sua lista de amigas se resumia a uma única pessoa: eu, e ela não quer ficar sozinha com uma bebida na mão esquerda e um cachorro quente na direita.

O Morro do Riacho, comunidade onde Jessica mora, fecha a rua todos os anos para fazer essa festa. Tem parque, shows e barraquinhas — e carros com som alto tocando funk estendem a festa para depois de meia noite. Quase uma festa junina — mas com mais funk e sem fogueira. É sempre a melhor festa que tem, e todas as pessoas conhecidas vão e outras que deveríamos conhecer vão também, palavras de Jessica. Mesmo assim, eu não estava a fim de ir.

Com o convite da festa ainda martelando na minha cabeça e o calor me sufocando, fui para o ponto de ônibus com Jessica, que tinha passado a noite na minha casa. O ônibus atrasou um pouco, e eu passei o tempo todo tentando encontrar uma desculpa convincente para evitar de sair.

A semana tinha sido um verdadeiro caos. A escola fechou o bimestre e, mesmo sem professor de geografia, fomos obrigadas a entregar um trabalho sobre um tema aleatório. O calor sufocante das salas lotadas com mais de trinta alunos e os ventiladores antigos que mal funcionavam faziam cada minuto parecer mais longo. O suor escorrendo pela nuca, o barulho constante de conversas e cadeiras rangendo me deixavam ainda mais irritada. Cheguei ao limite do estresse quando, junto com a representante que se conforma com tudo e Jessica, que argumenta muito bem, fui parar na diretoria por ter me alterado quando quiseram aproveitar o professor Joaquim do segundo ano para aplicar uma prova. Ele nunca tinha nos dado aula.

Quando estiver sóbrio (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora