46ª dose

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Algumas partidas nos arrancam pedaços tão grandes que se sentir inteira de novo parece impossível.

Do Natal até o Ano Novo, Ítalo e eu nos beijamos mais vezes.

Enquanto corto batatas, Yara me conta que está muito feliz por tudo o que tem acontecido e por tudo o que ela sabe que vai acontecer. Diz que sempre deu o maior apoio para nós dois e continua dando. Acho que é a pessoa que mais acreditou que Ítalo e eu ficaríamos bem, mais até do que o próprio Ítalo.

Sua voz está arrastada, carregada de fraqueza e cansaço. Cada palavra que sai de seus lábios parece pesar toneladas, como se o simples ato de falar fosse um esforço imenso. Tento aproveitar cada segundo ao seu lado com um sorriso, mas não consigo evitar. Toda vez que a olho, é como se eu estivesse buscando a mulher ativa que um dia ela foi, aquela que sempre esteve em movimento, forte e cheia de vida. Agora, vejo alguém que está indo embora aos poucos diante dos meus olhos. E eu sinto medo. Tento me enganar, me forçando a acreditar que tudo vai melhorar, mas o medo não me deixa em paz; está sempre aqui.

— Rômulo e Elisa brigavam o tempo inteiro — diz em voz baixa. — Só que era diferente de vocês dois. Eu sabia que eles não dariam certo.

Então, ela me conta um pouco da história de forma bem resumida e rápida. Acho que não quer que Ítalo escute. Yara diz que Rômulo e Elisa tinham vinte anos, e que sempre deu o maior apoio, assim como fez comigo. Só que Elisa sempre dizia que não queria filhos e estava muito triste por causa da gravidez. Quando Ítalo nasceu, as brigas aumentaram e Elisa continuou infeliz. Yara me conta que ela era muito branca, como Ítalo, e que seus olhos estavam tão fundos, com olheiras tão escuras, que parecia outra pessoa. Ela começou a chorar o tempo todo, deixou de pentear o cabelo e parou de se arrumar.

Engulo em seco, lembrando do início da minha gravidez e da tristeza absurda que me consumia. Tremi ao recordar o ódio que preenchia minha mente nos dias em que fiquei trancada no quarto, me odiando profundamente por estar grávida. Se eu tivesse continuado daquele jeito, será que teria ficado infeliz como Elisa? Será que eu teria ido embora? Acho que não..., mas nunca dá para ter certeza. A voz de Yara me traz de volta, afastando meus pensamentos.

— Elisa tinha um cabelo enorme, que ia até a cintura. Um belo dia, ela pegou a tesoura e cortou o cabelo acima do ombro. Eu sabia que tudo começaria a piorar.

— Ela simplesmente foi embora? Ou avisou algo? — pergunto.

— Cheguei da feira um dia e ela já estava com as malas prontas. Disse que não conseguia amar Ítalo e pediu para eu criá-lo com Rômulo. Ela não tinha muitos parentes, então não sei onde está. Ela não contava que Rômulo também não quisesse ser pai.

— Tadinho de Ítalo.

— Sim, mas eu cuidei bem dele e muito obrigada por aparecer na minha vida, minha querida — ela diz. — Você é a minha netinha!

Fico emocionada quando a ouço dizer isso, e respondo que a amo. Ela retribui, dizendo que me ama e também ama o Valentim. Penso nos pais de Ítalo e me sinto mal por ele ter passado por tudo isso. Essas coisas podem ferrar a cabeça de qualquer um. Não me surpreende ele nunca ter demonstrado nada por ninguém antes. Yara confessa que Ítalo encontrou a melhor mulher e que acredita na nossa felicidade juntos. Enquanto ela faz essas declarações, percebo onde ela quer chegar.

— Sei que vocês vão se casar! Só queria estar aqui para ver — finalizou, enquanto uma lágrima solitária escorria por seu rosto.

Não gosto de pensar na vida sem ela, então desvio o assunto. É quase impossível imaginar um mundo sem Yara. Não é como uma dessas situações inesperadas que te pegam de surpresa — eu sei que vai acontecer, mas achava que, sabendo, seria mais fácil. Só que uma perda é sempre uma perda, independentemente do quanto você se prepara. A dor vai ser a mesma.

Quando estiver sóbrio (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora