PRÓLOGO

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"Na verdade, minha família vem parte do Uruguai, então eu não sou totalmente-"

"Cala a boca, Daniel, você é paulista!"
Daniel foi interrompido abruptamente por Leo, que berrou do outro lado da sala, usando um maço de folhas de fichário enroladas como megafone.
Os colegas deram risada, Daniel corando até as pontas das orelhas, abaixando o rosto com uma mão na testa, os lábios tremendo e expressão não muito amigável.
"Sabem, o Niel tem a famosa síndrome do adolescente brasileiro que nasceu no país errado!"
Leo comentou, casualmente dando um salto para se sentar sobre a mesa de Thiago, que segurava o riso, desviando o olhar para negar participação na piada.
"Além disso, se você fosse argentino, não teria nem entrado no avião pra cá! Todo mundo odeia esses caras!"
Leo ajeitou os óculos de armação enorme, dando o sorriso sapeca de quem quer simples e unicamente causar uma boa discórdia.
"Eu disse que minha família é do Ur- Quer saber? Não vale a pena discutir com gente que não ouve."
Daniel bufou, abrindo um caderno de anotações pessoais, a maioria letras de músicas e ideias embaralhadas. Deixando a franja escura cair sobre os olhos, fingia ignorar a existência do amigo, relendo alguns versos anteriormente improvisados sobre um mundo vazio e o desejo de voltar para uma vida passada.

"Leo, acho que mais da metade da sala é de São Paulo, incluindo você..."
Thiago disse com a voz trêmula e um sorriso torto, se recusando a rir da piada que era repetida desde o sexto ou sétimo ano, sempre que Daniel tentava se apresentar para alunos novos.
"Vai cortar a minha onda só porque você tem esse sotaque de carioca forçado?"
Leo revirou os olhos, cutucando o ombro de Thiago e então lhe empurrando fraco, fingindo estar chateado.
"Me poupe, isso nem tem mais graça! Mais criatividade ano que vem!"
Maia, sentada na mesa a frente de Daniel, tentava defender o amigo do seu jeito, porém sorria.
"Eu fiz uma entrada dramática E usei um megafone, o que mais quer de mim, mulher?!"
Leo revirou os olhos, cutucando o joelho de Daniel, a ponta do pé atravessando o corredor de carteiras para atrapalhar sua escrita.
Os professores se referiam ao grupo com inúmeros sinônimos da palavra "Problema", porém nenhum discutia quando afirmado o fato de que os quatro absolutamente conquistavam não só as velhinhas da secretaria, seguranças e pessoal da limpeza como também todos os colegas.

Leo, como preferia ser chamado, se auto denominava o Palhaço da turma, sempre tendo uma sacada, efeito sonoro ou piada para os momentos certos. Não parecia ter a capacidade de ficar irritado, porém alguns mencionavam já terem visto-o entortar o nariz de um valentão com um só soco, mesmo com sua altura abaixo da média.
Diversos falharam ao tentar descobrir o segredo de ler gibis durante a maior parte das aulas e nunca pegar recuperações ao fim do semestre, concordando que provavelmente colava de Daniel ou Thiago.
Daniel, por sua vez, fazia sucesso com o violão nos intervalos das tardes de integral, recebendo pedidos para tocar na roda de alunos do Oitavo ano até o Terceiro do Ensino Médio, reunidos quase em tradição.
Bolsista, estava na escola desde a barriga de sua mãe, uma professora de inglês carismática e querida por todos que passaram por suas aulas.
Era visto como inteligente, gentil com colegas na medida do possível e talvez um pouco duro consigo mesmo na questão de notas, sendo Leo o único que parecia poder lhe tirar do sério e atacar uma questão não resolvida de raiva internalizada.
Thiago era o tipo mais quieto, misterioso e que não se abria muito facilmente em aula, sem hobbies aparentes além de vez ou outra aparecer com um livro novo em mãos. Diziam que antes de Leo lhe abduzir para o quarteto, no oitavo ano, não conversava mais do que o necessário e faltava frequentemente.
Não se sabia muito sobre sua família, além de que seu pai era extremamente abonado, apesar de Thiago não ostentar viagens ao exterior ou roupas de marca. De certo modo, seu jeito calado atraía a atenção e empatia da maioria, em conjunto com a aparência de alguém que poderia se pedir ajuda para a lição de história ou conversar sobre recomendações literárias.
Maia, por fim, era a única menina do grupo e apesar de participar ativamente das piadas e brincadeiras de Leo, assumia também a função de separar brigas frequentes entre ele e Daniel, seu amigo de infância e vizinho de prédio desde que se mudara aos sete anos para o apartamento de sua avó.
Estava quase sempre na casa de Daniel, mesmo quando os outros dois não estavam junto. Apesar de ser um pouco irritado e tratar Maia como uma irmã mais nova grudenta na maior parte do tempo, compartilhavam o mesmo gosto em música e poderiam passar tardes inteiras deitados no carpete ouvindo Rock antigo em silêncio.
Era capaz de ler cada um dos seus três amigos e saber o que sentiam mesmo antes de perceberem, habilidade que trazia certa vantagem ao enxergar diretamente por trás das piadas de Leo, comportamento de Thiago ou anotações de Daniel.

"Ei, cara, meu sotaque não é forçado..."
Thiago riu genuinamente, colegas ao redor tendo os corações derretidos.
Aquele era o primeiro dia no Primeiro ano do Ensino Médio, sentariam pela metade da manhã para ouvir sobre as novas responsabilidades em um novo grau, e durante a outra metade fariam as mesmas atividades de entrosamento com morais sem muita criatividade como em todos os outros anos na escola.
A maioria dos estudantes já se conhecia e estava na mesma sala há anos, os alunos novos sendo escassos e professores lecionando em vários graus consecutivos, fazendo com que as brincadeiras sobre criação de laços fossem convite para Leo inventar maneiras de agitar um pouco o dia monótono.
A uma professora nova, escreveu seu nome na lousa como "Leo Dazgat Inha", dizendo ser estrangeiro.
Quando questionado sobre suas esperanças para o novo ano, desdobrou um papel A2 e pigarreou, ditando uma lista sem fim de promessas vazias ou aleatórias que incluíam pintar o cabelo de verde, fundar o Clube de Anime da escola, escrever uma Fanfic romântica sobre o professor de Geografia em par ao de Ciências, cortar os cabelos de Daniel, entre outras.

Mais uma etapa do período letivo começava.
Não existia motivo algum para o ano ser minimamente diferente dos anteriores a não ser por poucas excursões a museus entediantes ou a festa junina onde Thiago ganharia duas vezes mais cartinhas no correio elegante do que os outros três combinados.
Talvez fosse a sensação de comodidade que incomodasse Daniel naquele tempo, especialmente durante as primeiras semanas de aula, assombrado pelo sentimento de desconfiança, de que por mais confortáveis que todos estivessem, algo sempre poderia e iria dar errado.
Tentou afastar aquele pensamento por um bom tempo, até quase metade do ano se passar, e mesmo assim, sua cabeça não cessava a repetição:
Tudo parecia perfeito demais.

No próximo invernoOnde histórias criam vida. Descubra agora