No próximo inverno

Memórias de uma vida passada

⚠️ AVISO DE GATILHO: Pesadelos, conteúdo perturbador, bullying e gore; Prossiga com cuidado!

Colocarei sinalizações nas partes necessárias! ♡

Em suas contas, Leo passara pelo menos dois dias dormindo no hospital antes de conseguir se manter acordado efetivamente por mais de cinco minutos. Aquelas quarenta e oito horas foram repletas de sonhos e memórias tão fora de contexto, sem sentido ou preenchidos pelo sentimento de saudade em constante conflito com o medo, confusão e déjà-vu que nem a ideia de acordar em um quarto desconhecido lhe parecia mais tão assustadora.
Revivera algumas de suas lembranças mais antigas, vezes distorcidas como se assistisse-as de longe, em terceira pessoa; outras, através de óculos de grau errado e lentes sujas.
Em muitas cenas, elementos que não deveriam estar presentes ou lhe pareciam irreais chamariam sua atenção;
Os olhos de Thiago brilhando em dourado, não esverdeados.
Maia usando um escapulário de prata em seu pescoço.
Um pequeno rato observando de longe.

⚠️  Conteúdo sensível, colocarei outro sinal quando terminar! ⚠️

Algumas ilusões eram mais perturbadoras que outras; Seus braços, pernas e rosto cobertos de queimaduras ao ponto de evitar espelhos pelo resto dos sonhos.
Barulhos súbitos, repetitivos de exatos quatro tiros.
Horas a fio contendo apenas o som abafado de estática aguda e irritante acompanhado por Daniel encarando-o através de um espelho, fixamente e sem expressão, enquanto seus ouvidos escorriam sangue continuamente.
Passava tempo indeterminado em cada sonho. Eram quase tão fluidos quanto virar o rosto ou piscar para encontrar-se em uma realidade completamente nova.
Os piores normalmente duravam mais.
Rolando os olhos para direções diferentes, acabou arremessado através de milhares de cenas marcantes em seu crescimento, como se desse cambalhotas e fosse arrastado por uma onda após levar um caldo, tão desorientado e sem ar quanto.
Viu Maia, Daniel e ele mesmo tirando fotos em um espelho enorme de loja, comprando roupas novas para o amigo anos atrás.
Sua reflexão era um contorno apagado e sem foco.
Em terceira pessoa, observou-se por alguns segundos encarar Daniel de forma terna enquanto tocava violão no intervalo, perguntando a si mesmo se sempre fazia expressão tão boba. Sentiu o calor no peito e garganta quando seus olhos se encontraram na memória, Daniel lhe torcendo o nariz, corado.
"Ei, canta algo em português pra variar!"
O Leo do passado caçoou, ajeitando os óculos ao tentar disfarçar as bochechas queimando.
Através da projeção em um teto assemelhado a água suspensa no vazio que preenchia o resto do espaço ao redor, assistiu o modo como Thiago riu genuinamente em sua presença pela primeira vez.
Viu Maia dançando na cozinha de sua casa, preparando misturas de sorvete, refrigerante e energético com qualidade duvidosa.
Por último, sentiu o gelado amoroso no estômago ao reviver a festa de formatura do Nono ano, quando Daniel surgiu vestindo roupas formais masculinas, a expressão ranzinza de sempre carregando certo medo do julgamento externo em seus olhos.
Não soube dizer quando, nem como despencou no vácuo que se estendia abaixo da reflexão dos amigos.
Logo julgou-se no local de mais profunda dor onde já estivera naquelas quarenta e oito horas.
O ar, tão denso e parado que era quase palpável, como se pudesse cortar um pedaço daquela atmosfera e dizer "Aqui, uma fatia de pesadelo apodrecido só para você!"
Alguns flashes e imagens pareciam borrados, incolores e enterrados ali, fundo em sua mente, bloqueados por alguma razão.
Não eram nítidos e iluminados como quando se tratava de Maia, Daniel e Thiago, obviamente.
Faziam parte de anos sombrios, ainda tão vívidos num jeito bruto, cru e dolorido.
Pulsante, como a ardência em sua pele.
Recusava-se inconscientemente a assistir tais memórias corrompidas, mas ainda podia ouvi-las, sentir física e emocionalmente o impacto que lhe causaram.
Risadas, vozes, cantigas infantis e xingamentos não só direcionados a si ecoavam continuamente dentro de sua cabeça, tomando posse de todo o espaço possível ao redor e dentro de si, comprimindo-o até Leo sentir-se apenas uma minúscula criança encolhida no vazio, o corpo dormente.