Cicatrizes, memórias e curativos usados

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Notas pré-capítulo;

Ei, sumides, há quanto tempo! NPI deu uma pausa beeeem longa (mas necessária, pela sanidade do autor aqui) então voltamos com um capítulo mais longuinho e uma nota de sugestão: Eu recomendo que releiam o capítulo anterior pra refrescar a memória, tive que fazer isso eu mesmo na hora de escrever esse aqui!
Obrigado pela paciência e apoio de sempre, espero que eu continue inspirando vocês!


⚠️ AVISO DE GATILHO: Menção de ferimentos/cicatrizes, menção de morte/trauma
Prossiga com cuidado, colocarei sinalizações nas partes necessárias! ♡
>> Tenha uma boa leitura:)

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TRINTA E DOIS;

Leo se aconchegou entre Daniel e Maia, escondendo o rosto no ombro da amiga ao fungar seus cabelos tingidos de loiro claro.
"Creme diferente, finalmente!"
Exclamou, Maia revirando os olhos.
"É, meu cabelo virou uma nuvem toin-oin-oin 'pra 'cê parar de me encher o saco."
Reclamou, encaixando-se no abraço do outro.
Havia trocado de creme de pentear há pelo menos duas semanas e Leo ainda fingia surpresa ao sentir o cheiro de eucalipto, diferente do creme abacaxi-doce para cabelos lisos que estragava seus cachos.
"Eu vou arranjar outra coisa pra encher, eu prometo."
Leo retirou os óculos, pronto para cochilar enquanto Daniel jogava em seu celular e Maia rabiscava algo no caderno dado por Thiago.
"Eu não duvido."
Disse Daniel ao lado, contorcendo o nariz para a tela.
"Para de ser chato..."
Maia reclamou.
"Eu?"
Daniel apontou para si, ao mesmo tempo que Leo ecoava sua pergunta com um sorriso sapeca.
"...Sim?"
Maia segurou a risada, respondendo ambiguamente.

Leo sorriu e esfregou seus olhos com sonolência, visão turva.
"Má, 'cê não ajuda..."
Murmurou em palavras arrastadas, finalmente focando a mesa de centro à sua frente.
Não pertencia à sala de Daniel.
Levantou o olhar para a televisão, congelada nos créditos do filme assistido e então à janela que mostrava o céu nublado da noite.
"Acordou, Bichinho?"
A voz de Diego sussurrou conforme Leo se ajeitava no sofá, ainda atordoado e sonolento ao se afastar de seu abraço.
Quando levantou os olhos escuros para o mais velho, expressava a realização melancólica da nova vida que vivia.
Apesar de parecer descansado, as íris cor de petróleo perdiam o brilho a cada informação re-processada.
"Que horas são?"
Murmurou.
"...Umas oito, 'cê tá com fome?"
Diego tentou forçar um sorriso, fechando a tela espelhada de seu notebook para a TV.
O jornal da noite começava.
Ambos encararam a televisão em silêncio, as manchetes principais lidas pelo âncora de terno azul-jeans e gravata florida.
"Cacete, que canal é esse?"
Leo resmungou. Diego riu em resposta, levantando-se para buscar a pomada e bandagens deixadas por Otto em cima da mesa dobrável no canto da sala.
"De novo? A gente já trocou de manhã."
Reclamou o menino, ainda sonolento.
"Eu 'tô preferindo é ter certeza de que os seus braço' não vai cair com qualquer força a mais, Bichinho. A gente tem que aproveitar que o... Que o Otto comprou bastante coisa."
Diego respondeu com um suspiro, hesitando em mencionar que, não fosse por Otto, não teria o luxo de trocar seus curativos mais de uma vez ao dia.
Sentou-se outra vez, abrindo o mesmo sorriso torto de sempre, aquele que fechava o olho esquerdo na mesma medida do direito, diminuindo a discrepância que sua cicatriz causava.
Leo respirou fundo, virando-se de costas para Diego e afastando o casacão da nuca, onde seus dedos frios poderiam cuidar da primeira ferida.
"Desculpa por... Ter te feito falar."
O menino murmurou, encolhendo seus ombros ao sentir o toque de Diego contra o ferimento de sua nuca, aparentemente atingida por uma viga de madeira em brasa.
"Hmhm, não tem problema não, Bichinho. Eu não ligo de te contar sobre essas coisas."
Diego contorceu o nariz e mordeu os lábios ao ouvir uma reclamação de dor, desculpando-se baixo antes de continuar.
"Mas é injusto 'cê saber tudo de mim e eu nada de você, hein? A gente vai ter que jogar pergunta e resposta de novo, se pá."
Provocou, afagando os cabelos de Leo para sinalizar que poderia se virar. Arregaçou as mangas compridas do blusão emprestado, olhos concentrados no trabalho que fazia. O menino sorriu de modo dolorido, apesar de tentar demonstrar certo humor.
"E aí você faz duas perguntas e eu uma, é isso?"
Brincou.
"Ah, como nos velhos tempos, hm?"
Diego respondeu ao levantar os olhos cor de mel, sorrindo antes de continuar a passar pomada nos braços de Leo, que respirava fundo a cada toque, dentes cerrados em dor aparente.
"Então... Eu começo. Me fala dos seus amigos."
"Isso não é uma pergunta."
O garoto arqueou as sobrancelhas, apesar de atordoado.
"Tá, tá. O que 'cês fazia' 'pra passar o tempo?"
Diego reformulou a pergunta, revirando os olhos.
"...Sorvete."
Leo respondeu baixo, abaixando o olhar para as mãos do outro, expressão vazia de repente.
"A gente tomava sorvete no inverno. Nas férias."
Acrescentou, olhos escuros brilhando amorosamente.
"Sorvete no inverno?"
O mais velho repetiu com um sorriso terno.
"É, tradição. Primeiro dia de férias, sorvete na praça. Foi minha ideia, eu acho."
Leo respondeu, dando uma risada nasal ao acordar de seu transe rápido.
"E... 'Cê morava com os seus pais?"
Diego fez sua segunda pergunta, terminando de enfaixar o braço esquerdo de Leo, que tinha as feridas mais graves. Segurou a mão direita, apoiando-a em seu joelho e então se curvando para observar as queimaduras mais de perto.
"...Sim. Com os meus pais e a minha vira-lata caramelo."
Respondeu, aprumando as costas para afastar seu rosto dos cabelos oleosos de Diego.
"Vitória, Ângelo e a... Anitta."
"Vitória é um nome chique pra cachorro."
Comentou o outro, continuando seus cuidados.
"Vitória é a minha mãe."
Leo disse em voz risonha.
"Ui."
Diego contorceu o rosto, envergonhado. Levantou os olhos, sorriso torto nos lábios.
"Agora a sua pergunta, vai."
Leo respirou fundo, olhos vagando pelo apartamento em busca de inspiração. Apesar do clima triste de noite garoenta, do som baixo do noticiário sensacionalista ao fundo e o assunto mórbido rapidamente trocado, não se sentia completamente melancólico. A presença de Diego lhe trazia um ar confortável e familiar, como Maia sempre fizera.
"'Você conhece ele de outras vidas', ela ia dizer. E não é tão improvável, se a gente parar 'pra pensar.
Eu ia querer reencontrar ele, se eu tivesse a chance. Então talvez eu tenha tido."
Engoliu ruidosamente, coçando o queixo com a mão livre.
"Há quanto tempo 'cê mora aqui?"
Perguntou em voz falha.
Diego tinha os olhos dourados de Maia, cabelos tão escuros quanto Daniel e a mesma pele pálida, apesar de possuir tantas pintas delicadas quanto Thiago tinha pelo corpo todo.
Ele sorriu, mostrando o canino direito antes de levantar o olhar, expressão divertida.
"Uns anos já. Essa é a sua melhor pergunta?"
Leo deu de ombros, devolvendo um sorriso fraco.
"'Cê não vai querer contar com o que você trabalha."
"Trabalhava."
Corrigiu, uma pitada de orgulho na voz.
"Trabalhava. E a sua família não tem muito a ver com a vida de hoje né?"
"Não, não muito. Mas até aí, a sua também não."
Leo se calou, desviando o olhar.
"É, a minha também não."
Murmurou.
"Mas depende do ponto de vista, hm?
No fim, esses clichês funcionam; Querendo ou não eles... Moldaram quem 'cê é né? Essa carranca aí. E ter uma cachorra chamada Anitta."
Diego sorriu, enfaixando o braço de Leo.
"É tudo o que 'cê sabe sobre mim?"
O garoto brincou, tom triste.
"Ah, é sim."
"E ele também fala que nem a Maia. Ou que nem eu, quando eu falo coisa que presta.
Quando o Niel fala que eu 'até pareço que penso'"
Leo sorriu, recolocando seu casaco após ajeitar as mangas.
"Uma sensação que 'cê gosta?"
Diego jogou o rolo de bandagens e o tubo de pomada na mesinha de centro, levantando-se com os curativos sujos em mãos.
"...Fazer xixi depois de sair correndo do cinema na última sessão da noite num dia de semana."
Leo respondeu sem hesitar, piscando ao perceber sua confiança na afirmação.
"Específico."
Diego riu, ainda parado perto do sofá. Levou os olhos até a televisão, a voz do repórter parecendo tomar conta da sala, ressoando pelas paredes e pesando nos ombros como o cansaço triste do fim de um dia ruim.
"Meados de agosto e quase dois meses do incêndio repentino que levou uma família inteira de uma madrugada para outra. Entre as vítimas, Ângelo e Vitória Fernandez, de cinquenta e quarenta e dois anos, além da cadelinha do lar."
Leo se manteve em silêncio, olhos fixos na tela e lábios entreabertos. Sua expressão se assemelhava a de um veterano de guerra à beira da morte, dominado pela loucura e memórias fúnebres de tempos sombrios.
"A mulher, grávida de dois meses, foi levada para o hospital ainda com vida, porém não resistiu. O filho do casal, Leonardo, de dezessete anos, foi o único-"
A voz cessou ao mesmo tempo que o rosto de Leo, antes uma foto sorridente, era refletido na tela, olhos vazios acompanhados de olheiras profundas, bochechas evidentemente mais magras e cabelos bagunçados um pouco mais compridos do que seu padrão.
"Grávida de dois meses."
Diego ficou em silêncio por alguns segundos, ainda com o controle em mãos. Respirou fundo, ajoelhando-se na frente do garoto.
"Dezessete anos, o único sobrevivente."
Não parecia conseguir encontrar as palavras certas, analisando seu rosto por completo.
"Um ano é o que você precisa? Eu diria muito mais do que isso, Bichinho. Vai demorar 'pra isso sarar."

No próximo invernoOnde histórias criam vida. Descubra agora