Histórias de outras vidas

74 17 60
                                    

⚠️ AVISO DE GATILHO: Sangue, luto, fome;

>> Tenha uma boa leitura:)


"Ah, merda."
Leo murmurou.
Estava encostado contra a parede do corredor, perto das escadas que desciam até a entrada principal de sua casa no interior.
Ali, no meio do mato, era onde encontrava paz para escrever; Fugindo um pouco da rotina massante na casa dos pais.
Acordara com o barulho de vidro quebrando no andar de baixo e segurava uma raquete elétrica mata-mosquito para se defender, pernas, braços e mãos tremendo involuntariamente.
Desceu devagar.
Cada passo era um movimento lento, torturante e silencioso, evitando ao máximo os pontos rangentes conhecidos nos degraus de madeira.
Não ouviu nada. Nenhum movimento.
Observou a pequena janela decorativa de vidro colorido de sua porta, agora quebrada.
A porta estava encostada, não fechada.
Os chaveiros balançavam, ainda pendurados na chave da fechadura.
"Certo, ô... Engraçadinho! Eu tenho... Tenho uma arma, e NÃO tenho medo de us-"
Foi interrompido pelo próprio grito desafinado, desviando de um prato de porcelana voando diretamente pela entrada da cozinha escura à parede atrás de si.
"MINHA VÓ PINTOU ISSO!"
Exclamou, vendo o prato com flores lilás pintadas agora estilhaçado no chão.
"Vem pra briga, se for homem!
...Ou... Menina...? "
Leo alterou o tom gradualmente, baixando sua raquete enquanto observava uma garota sair de dentro da cozinha, segurando mais dois pratos ornamentais com a mão livre.
"Ok... Não vamo'... Estragar a herança da vovó, tá...?"
Ele abaixou sua raquete completamente, olhos escuros fixos nos da garota, que possuía grandes e redondas íris cor de mel.
"Você... Jesus, seu braço!"
A voz desafinou novamente ao perceber que aquela menina apertava o ombro direito com força, sangue escorrendo por entre os dedos.
Usava um vestido ciano chique, que valorizava seu formato e parecia de tecido caro.
Não dissera uma palavra ao sair da cozinha e encarar Leo, ofegando de maneira trêmula antes de se pronunciar:
"Eu não posso voltar."
Murmurou, dando um passo na direção de Leo e então fraquejando, caindo em sua direção.
O garoto soltou sua arma e se lançou para segurar a estranha no ar, quase sendo levado junto.
"CERTO! Ok, uma menina quase morta na minha casa de campo! Emocionante!"
Ironizou, atordoado ao ajustar a garota em seu abraço. Não conseguiria levantá-la, eram do mesmo tamanho e Leo possuía a força de um adolescente magrelo.

"Mas pera."
Maia interrompeu e Leo fez uma careta, cruzando os braços.
"Qual a época disso? As raquetes de macetar mosquito foram criadas quando? A regra é não pode ser na atualidade."
Ela protestou, Leo arqueando as sobrancelhas com seu sorriso sapeca.
"Você claramente não é como o Mestre Das Pesquisas Leo Fernandez, que pesquisa absolutamente tudo antes de criar uma história!"
"'Cê olhou o primeiro site que achou, né?"
"Absolutamente correta, e o site me disse pessoalmente que as raquetes foram inventadas em mil e quatroce-"
"Isso são as raquetes de esportes, animal!"
Leo se calou com um bico confuso, parecendo ainda raciocinar. Ele pegou seu celular, digitou e leu por alguns segundos.
"Em mil novecentos e onze, as raquetes elétricas foram inventadas. Erros técnicos e eu ainda tô certo."
Corrigiu, as bochechas avermelhadas.
"Tá, continua."
Maia gargalhou. Leo revirou os olhos, pronto para continuar a história.
"Heroicamente, eu-"
"Pera, pera."
Maia interrompeu mais uma vez.
"Caceta, mulher!"
Ele reclamou, bravo.
"Onde que tá o Niel nessa vida mesmo?"
A amiga perguntou.
"Ah, ele já aparece, ele vai tentar me matar umas semanas depois da gente se apaixonar."
Leo explicou casualmente.
"Ok, pode ir."

Leo sorriu fraco, sentado ao lado de sua garrafa d'água. Estava novamente debaixo do toldo de uma galeria fechada para se proteger da garoa fina.
Fechou os olhos por alguns segundos, tentando o possível para reter o calor reconfortante da memória.
Tudo o que sobrara, no entanto, fora o vazio da perda ecoando dentro do peito.
Suspirou, dando mais alguns goles na garrafa preenchida pela metade com água de uma torneira pública.
Com a dificuldade em conseguir comida, racionava e pulava refeições, tomando o máximo de líquido possível entre elas para cobrir o estômago.
Coçou seus braços com cuidado. Cada dia passado significava um grau a mais de incômodo e coceira nos curativos velhos.
Tinha certeza de que estavam infeccionados. Não tinha coragem de checar.
Sua visão embaçada pela falta dos óculos se empenhou para focar em um contorno confuso que se aproximava pela calçada vazia. Logo, o rosto pálido de Rato tomou forma, o jovem retirando uma das mãos de seus bolsos para acenar a Leo.
"Ei, Junho, e aí, menino? Frio do cacete!"
Ele cumprimentou, o mesmo sorriso torto de uma semana antes. Os olhos tinham um brilho preocupado quando se agachou à altura de Leo.
"Tua cara tá um lixo!"
Exclamou em tom ambíguo de surpresa, sarcasmo e preocupação.
"...Valeu, Rato. Dá pra ver que não tem nada pra assaltar?"
Leo respondeu com a voz rouca, grunhindo quando Rato se sentou ao seu lado em pose relaxada.
"Dá sim, dá pra ver. 'Cê tem sorte, se não ia ser um trouxão esperando pra ser roubado aqui!"
Ele respondeu com uma risada, levando suas mãos para trás da cabeça e então cruzando as longas pernas. Parecia usar a mesma roupa de sete dias atrás, a não ser pela camisa surrada de cor diferente.
Leo se manteve em silêncio, olhos fixos no vazio.
"Então, tá de novo querendo andar por aí no frio em vez de ficar em casa?"
Rato provocou, já sabendo a resposta.
"Isso."
O garoto respondeu sem animação, suspirando outra vez.
"Ok! Vou te fazer companhia então."
Rato decidiu, aconchegando-se para mais perto do que o necessário ao retirar o antigo canivete do bolso e aparar as próprias unhas grotescamente.
Leo se afastou alguns centímetros, observando Rato discretamente.
Não respondeu.
"Não é muito de falar, né? Tá ok, eu posso falar!"
Ofereceu.
Leo fechou os olhos em silêncio, abstraindo as palavras de Rato enquanto este tagarelava.

O ar frio machucava sua garganta, congelava os pulmões, ao mesmo tempo que sentia o estômago queimar, como se estivesse doente. A voz do outro era filtrada e nada mais ouvia do que a própria respiração e batimentos cardíacos lentos.
Pensou por um tempo na familiaridade da situação.
Logo, suas bochechas doíam, coradas e pulsando de vergonha. Os olhos ardiam, mesmo que não pudesse se dar ao luxo de perder qualquer mineral presente nas lágrimas.
Sorriu de repente, rindo fraco pelas narinas e abaixando o rosto em suas mãos.
"É uma bosta."
Ele sibilou, Rato se calando.
"O que?! Não, cara, tô falando, se 'cê mistura chocolate e pão de queijo, fica-"
Leo levantou o queixo, piscando para impedir a continuidade do choro.
"É um saco ficar ouvindo um imbecil que eu não conheço falando bosta! Meu Deus, Thiago, me perdoa."
Ele interrompeu, exclamando em tom ácido.
"Tá chorando, moleque?"
Rato piscou, confuso.
"Não tô."
Leo limpou suas lágrimas com as mãos sujas, dentes rangendo.
"... Ó, menino, vamo' pegar alguma coisa pra comer.
Eu pago qualquer coisa pra não ver criança chorando."
Rato sugeriu em tom divertido, empurrando a cabeça de Leo entre os ombros num afago bruto ao se levantar.
"Vai ficar me enchendo o saco com pergunta de novo?"
Leo reclamou, puxando sua mala do chão para seguir o delinquente.
"Com certeza. Então, pizza ou sanduba do Tio?"
Rato sorriu casualmente, recolocando as mãos nos bolsos.
"Ele nem é seu tio, né?"
O garoto perguntou ao jogar a mochila sobre as costas, pronto para seguir.
"Nah, meu tio é um espanhol bêbado que não cozinha um ovo nem pro próprio filho.
O Chris é só... Um tiozão pra geral mesmo."
Ele respondeu, começando a caminhada.
"Então você tem família?"
Leo perguntou, observando Rato andar sem medo pelo meio da rua ao desviar da calçada com obra incompleta, o chão constituído somente de areia e cascalho molhados.
"Tanto quanto você, ô... Junho."
Respondeu, segurando o riso quando Leo desatentamente afundou seu pé em um monte úmido de entulho.
Diminuiu o passo para que o alcançasse, Leo mancando ao arrastar o sapato pelo asfalto para o limpar.
"Essa sua piada não tem graça."
Reclamou.
"Sei falar essas coisas não."
Rato justificou, dando de ombros.
"'Cê nem tentou ainda."
Leo se queixou, abraçando o próprio corpo quando a garoa apertou, braços arrepiados por baixo de seu moletom ensopado.
"Eu acho que se fosse um nome real eu não erraria!"
Ele riu, retirando o próprio casacão de aviador e colocando por cima dos ombros magros de Leo, que suspirou em resposta.
O garoto se aconchegou no casaco três vezes maior que si, ignorando a culpa de deixar Rato apenas com uma blusa fina e surrada, provavelmente falsificada para parecer a oficial de algum time.
"Tá chegando já, moleque, 'guenta."
Rato afagou o ombro de Leo afetuosamente, mesmo com a maneira bruta e exagerada padrão.

Chegando ao restaurante prometido, Rato deixou que Leo seguisse até o balcão para pedir o que quisesse, distraído por algo do lado de fora, firmemente colado no poste de luz.
Leo se esforçava para ler o cardápio plastificado, saltando quando Rato apoiou a mão em seu ombro.
"Ô, menino, eu não sei se ficar aqui é uma boa."
Sussurrou, o olho bom brilhando em preocupação genuína.
"Rato, eu não como nada há tipo-"
"A gente come em outro lugar."
Ele interrompeu, apontando com o queixo para fora e então se afastando.
Leo fitou as costas magras de Rato enquanto se afastava, decidindo deixar o cardápio de lado e seguir o outro.
Algo em seu tom de voz, apesar de assustador, parecia mostrar certa cautela pelo mais novo.
Silenciosamente, Leo se aproximou de Rato, que desencostou do poste, permitindo a visão de um cartaz de desaparecido, estrelando o inconfundível rosto sorridente do garoto.
"...Merda."
Murmurou passando as mãos pelos cabelos em um suspiro.
"Eu entendo se você não quiser voltar, Juno, mas eu realmente não quero que fiquem achando que fui eu que te dei um sumiço."
Rato riu de maneira nervosa, acertando a pronúncia do nome inventado.
Leo franziu o cenho, parecendo não ouvir o pedido de Rato, ausente.
"Ei."
O mais velho chamou, tocando seu ombro.
"O tal de Otto não adotou um menino que tem a minha idade? Você que disse.
...Não iam achar estranho, né? Pelo menos... Aqui."
Ele murmurou, expressão vazia. Rato balançou a cabeça em resposta.
"Era diferente na época. Ninguém... Tava realmente procurando esse menino."
Ele observou o garoto encarar a própria imagem, ar dolorido.
"Vamo', Juno, a gente come em outro lugar, eu prometo."
Convidou pacientemente.
"É Leo."
Murmurou.
"Eu sei ler. Você não quer usar, eu não vou usar."
Rato respondeu com seu sorriso torto de sempre.
"Bora, arranca isso daí."
Leo assentiu após alguns segundos de confusão, retirando cuidadosamente o cartaz do poste e o guardando em sua mochila.
"Pizza, então?"
O mais velho perguntou, abrindo um braço na intenção de abraçar Leo pelos ombros.
Repreendeu a si mesmo subitamente, congelando durante o ato.
Logo sorriu e, devagar, voltou as mãos aos bolsos da calça, acelerando o passo.
"...Se você conseguir pagar uma pizza comestível. É."
Leo arqueou as sobrancelhas, sem perceber a sequência de ações atrapalhadas de Rato.
"E essa tua mãe não te ensinou a não reclamar de barriga cheia, né, moleque?"
O outro se queixou, ouvindo Leo rir sarcasticamente atrás de si.

No próximo invernoOnde histórias criam vida. Descubra agora