Olhos azuis e o mar

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⚠️ AVISO DE GATILHO: Talassofobia (agonia, medo & fobia do mar/mar aberto) "Daddy issues", implicação de auto mutilação (não explícito) & Pesadelos;
Prossiga com cuidado!
Colocarei sinalizações nas partes necessárias! ♡

♡♡♡

Daniel viu a si mesmo como criança, sentado no chão em frente à televisão enorme de "tubo" que estivera na sala do apartamento durante toda sua infância.
Observou seus dedos desajeitados colocarem uma fita VHS gasta no aparelho que as reproduzia.
As imagens da televisão lhe pareciam embaçadas, mesmo que soubesse de trás para frente cada segundo de vídeo passado.
"Olha pra cá. Não pra luz vermelha, pra lente!"
A voz de Helena gargalhou, filmando um jovem adulto de cabelos escuros bagunçados e olhos tão azuis quanto os de Daniel mostrando a língua para a tela.
"Você treme tudo!"
Ele riu, estendendo as mãos para tomar a câmera de Helena e então filmando as ondas, areia e horizonte da praia em que estavam.
"Já surfou?"
Perguntou, abafado pelo som do vento.
"Eu praticamente cresci no litoral uruguaio, Alexandre, não sou as outras menininhas que você sai não."
Helena respondeu em tom sarcástico.
"É, eu esqueço que você é diferente."
Alexandre levou a câmera na direção de Helena, que sorriu e acenou, olhos esverdeados brilhantes e cabelos loiros presos em um rabo de cavalo frouxo.
"Então, essa é a sua praia favorita?"
Ele perguntou.
"Não, é a sua, a minha tá no Uruguai."
"Eu vou perguntar de novo! Essa é a sua praia favorita?"
Ambos riram, vozes misturadas com as ondas e ventania.

⚠️  Conteúdo sensível, colocarei outro sinal quando terminar! ⚠️

O foco do vídeo se desviou para o mar ondulando, Daniel sentindo-se parcialmente enjoado apenas de observar a água fluindo infinitamente ao horizonte de pequenos pontos verdes.
"Desliga isso."
Murmurou, voz falha e atordoada.
"Daniel, desliga isso."
Aumentou seu tom, porém sua versão criança continuava hipnotizada pela imagem, olhos brilhantes e um sorriso banguela, as bochechas avermelhadas por ouvir minimamente as vozes de seus pais naquele vídeo mal feito que provavelmente fora jogado no lixo em alguma crise de adolescência.
"Puta merda."
Ofegou ao ver a primeira gota escorrer de uma pequena rachadura na tela. Chamou seu nome mais uma vez, tocando o ombro do menor, que não se moveu.
"Daniel, por favor."
Exclamou, levantando a criança por debaixo dos braços em desespero. Assim, pareceu lhe acordar para a realidade, tendo em conta a sua expressão confusa e olhos azuis chorosos.
A água agora vazava da entrada do aparelho de fitas, das caixas de som e pelas bordas da televisão enquanto Daniel acolhia o menor em seu colo, entregando-o um gatinho de pelúcia surrado do chão molhado.
Como se não o suficiente, logo a mesma água salgada que agora já chegava aos seus tornozelos também gotejava pelas janelas da sala, evoluindo para um fluxo irrefreável.
"Essa merda de vídeo, essa merda de praia!"
Esbravejou em desespero, já aturdido e à beira de um colapso nervoso, a água chegando às suas coxas e engolindo os pés da criança em seu colo.
"Eu quero o meu pai..."
O menor lamentou, e assim que suas poucas lágrimas quentes tocaram a água em constante multiplicação, toda a sala irrompeu por dentro em uma explosão de água salgada.
Perdeu-se da criança em meio a tantas cambalhotas, como em um caldo de mar, sendo lançado diretamente contra uma infinitamente extensa fenda escura, por onde afundou sem esperanças para voltar, gastando seu último fôlego em um grito abafado pela água.

⚠️ Sinalização! Já é seguro pra ler! ♡ ⚠️

Daniel sentou em sua cama com um solavanco, ofegante e encharcado de suor. Olhou ao redor pelo quarto escuro, unhas ainda fincadas nos lençóis, as íris em seu azul-elétrico mais puro, pupilas dilatadas.
"Bosta de..."
Murmurou, deitando-se novamente e passando a mão pela própria testa úmida para afastar a franja grudada nesta.
Lentamente tateou pelo colchão até encontrar seu celular e desbloquear a tela. 
O horário, 03:34 da manhã.
Respirou fundo, precisando de mais algum tempo para regular as batidas de seu coração.
"Pesadelo"
Enviou ao contato de Maia, recebendo a resposta padrão poucos segundos depois.
"Vou aí?"
"Sim"

Daniel continuou deitado, pousando o celular em sua barriga e esperando que Maia entrasse no quarto a qualquer momento.
Sua mãe estava acostumada com idas e vindas noturnas, além de dormir como uma pedra, portanto o fato de Maia passar para a cama de Daniel noite sim, noite não, não era problema.

"Ei."
Maia sussurrou, encostada contra o batente da porta. O rádio relógio dizia 03:49, mesmo que Daniel não sentisse ter passado tanto tempo apenas encarando a escuridão.
"Tô melhor. Pode ir."
Murmurou, voz surpreendentemente rouca e áspera.
"Sei, vai pra lá."
Maia deitou ao lado do amigo, compartilhando seu travesseiro, ambos de barriga para cima.
Continuaram fitando o teto de estrelinhas fosforescentes até o sino da igreja do bairro, audível somente de madrugada, tocar quatro badaladas.
"O que foi dessa vez?"
Maia perguntou baixo, levando os olhos ao outro.
"Ugh, acho que... Eu criança, fitas idiotas e...
E água."
Daniel grunhiu no escuro, cobrindo o rosto com as mãos.
"De novo? É tipo a terceira vez seguida."
"Digo eu, não é você que tem pesadelos com água e tecnologia."
Reclamou, voz abafada entre os dedos.
"É normal, é o seu jeito de lidar com..."
"Maia, eu podia ter pesadelos sobre a minha infância em qualquer outra hora que não tivesse coisa maior pra me preocupar."
Daniel interrompeu, ríspido.
"A água é emoção.
A água sempre é emoção, sempre tá nos seus sonhos quando você tá sobrecarregado.
Você não esqueceu... Dele... Só tá processando muita coisa de uma vez."
Ela manteve o tom calmo.
"Ainda. De novo."
"Sim, ainda e de novo."
Ambos suspiraram pesadamente.
"Da onde você tirou que água é emoção, de qualquer jeito?"
"Ah, é algo seu que eu notei."
Maia deu de ombros.
"É um padrão, é difícil não perceber que quando você tá mal você sonha com água, água, cachoeiras, mar aberto e mais água.
E isso entra na sua talassofobia, então um estresse representa outro, acho."
Elaborou, levando as mãos até as de Daniel e as retirando cuidadosamente de seu rosto, com medo de que se machucasse.
"Você tem um desses? Sonhos padrão de estresse?"
Perguntou o garoto, levantando seus olhos para a amiga.
"Eu sonho que não eu posso me mexer, ou que tô muito mole e fraca. É igual ao Leo."
Ela respondeu, acariciando o rosto de Daniel à procura de ferimentos feitos por suas unhas.
"Você sabe se o Thiago tem isso?"
"Todo mundo tem, Niel. Mas ele nunca me contou os dele, acho.
Se eu tivesse que chutar de memória e adivinhação, seria...
Não poder falar e gritar. Provavelmente."
Maia puxou o queixo de Daniel com carinho, aconchegando-se perto do amigo, rosto encaixado em seu pescoço.
"Grudenta."
Murmurou Daniel.
"Você que tá suado."
Respondeu, os dois sorrindo levemente.
"...Pode dormir agora. Vou ficar de olho."
"Insônia de novo?"
"De novo? Ainda. Bom, há um mês, né."
Maia explicou, suspirando.

"...Tirou o binder?"
Perguntou delicadamente, mudando de assunto.
"Sim, se não já teria morrido sufocado."
Daniel reclamou ao repuxar seu blusão algumas vezes, mostrando que não havia nada marcando por baixo.
"Bom. Pra dormir confortável e quentinho. A segunda parte você deixa comigo porque parece que eu tô deitada com uma lagartixa e não com o meu melhor amigo."
Maia sussurrou, trazendo os cobertores para perto e mais uma vez se aconchegando abraçada ao outro.
"...Valeu..."
Daniel murmurou, finalmente agradecendo pelo apoio da amiga naquela madrugada.
"Tô aqui pra isso, Niel."
Ela respondeu baixo, mais séria.
"Então continua aqui pra isso."
Pediu o outro.
"Como se você já não fizesse parte da minha alma."
Maia disse em tom convicto e doce, pousando sua mão sobre a de Daniel, em cima de sua barriga.

No próximo invernoOnde histórias criam vida. Descubra agora