Dia um

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⚠️ AVISO DE GATILHO: Fome, sofrimento geral;
Prossiga com cuidado!

"Sai pra lá, bundão."
Daniel empurrou Leo para o canto de sua cama, perto da parede, e largou o peso ao seu lado, mãos atrás da cabeça.
"A cama é minha, volta pro seu violão..."
Leo reclamou, remexendo-se para dar mais espaço a Daniel.
"A cama é minha, você tá na minha casa."
Retrucou o outro, fechando seus olhos e suspirando, sorrindo ao ouvir Leo repetir suas palavras com voz fina debochada.
Mais uma sexta-feira à tarde.

Ficaram em silêncio por um tempo, Leo lentamente virando o rosto na direção de Daniel, observando-o.
"O quê?"
Resmungou, abrindo um olho azul claro.
"Tem uma manchinha aqui, ó..."
Leo cutucou o rosto de Daniel, e então traçou toda sua bochecha.
"E aqui, aqui, aqui... Ah! Esqueci! É que você é sardento!"
Provocou, recebendo um empurrão.
"Me deixa dormir, imbecil."
Daniel puxou sua bochecha e a apertou até Leo reclamar de dor, ambos rindo.
"Pelo menos eu não tenho um nariz de coala..."
"Pelo menos eu não sou um poste corcunda."
"Pelo m- Pelo menos eu não tenho a altura média de uma criança de 12 anos!"
"Pelo menos eu corto o cabelo . . ."
Leo sorriu grande, provocando-o com seu maior argumento.
"Eu corto o cabelo."
"Não corta não... Seu He-Man vampiro!"
"Você é impossível."
Daniel segurou a risada, virando-se completamente para Leo.

"Oi, Olhos."
Leo sorriu, mantendo o contato visual com os olhos azul-elétrico de Daniel.
"Não me chama assim..."
Murmurou, bochechas formigando.
"É a sua única qualidade."
"Ah, sim."
Torceu o nariz para Leo, que riu baixo.
"Então, vem sempre aqui?"
"Não. Começa."
Daniel enfiou a mão no rosto de Leo, empurrando-o para a parede.
"Espaço pessoal."
"Você que veio deitar do meu lado!"
Reclamou em tom manhoso, voz abafada pela mão de Daniel.
"Você é irritante..."
Resmungou de volta, retirando sua mão e se aconchegando na cama.
"Mas você gosta."
"Eu aturo, é diferente."
Daniel sorriu, olhando para Leo, que ajeitou seus óculos e deitou a cabeça novamente.
"Tô sabendo."
Sorriu em resposta, dando continuidade ao olhar de Daniel.
"Que música era aquela que você tava tocando antes?"
Perguntou, curioso.
"Não tava tocando, tava compondo."
"Mesma coisa."
"Não."
Daniel revirou os olhos.
"Sei lá, tô tentando algo diferente."
Continuou.
"Parecia mais triste."
"Não era triste, só era lenta."
"Não dá pra entender nada que você resmunga quando compõe, então não entendi a letra."
Leo deu de ombros, sorrindo.
"É romântica."
"Imagino a sua ideia de romântico.
Um piquenique no cemitério, à luz de velas vermelhas, comendo ... Batata chips."
"É, sim, e bebendo taças de sangue."
Daniel revirou os olhos, irritado.
"É legal que você tá fazendo algo diferente de 'Eu tenho depressão, odeio o governo e assisto pornô' pra variar!"
Leo sorriu enquanto Daniel gargalhava.
"Pornô é nojento, mas acho que sim."

"E o que a música fala? Como que você, Death-Boy-Ghost-King Niel, pode ser romântico?"
Leo brincou, interessado.
"Eu... Hm, a música fala de...
Ah, sei lá..."
Daniel desviou o olhar, corado.
"Tá com vergonha de mim?"
Leo exclamou.
"Você me zoa!"
"E você me bate! Vai, eu não vou zoar... Eu quero saber!"
"Tá, você me irrita! A música é sobre ... Mar."
"Mar ...?"
"É. Eu gosto do mar."
"Uma música de amor pro mar?"
"Não, idiota. É poesia. É... Mar e... Conversas.
E palavras não ditas.
E conexão."
"Conexão é legal."
"Eu sei."
"Certo... Então 'cê coloca todos os sentimentos melosos... E enfia o mar onde?"
"Eu não sei ainda, você sabe que eu ia muito pra praia um tempo atrás.
Mesmo que eu odeie as roupas de banho e sei lá... O calor...
Eu gosto da sensação, o cheiro.
E o vento, o silêncio."
"Por que não usa florestas?"
"Quê?"
"Florestas. Tem tipo, tudo isso aí.
Mas você não precisa ficar pelado."
Leo virou de barriga para cima, sorrindo ao completar seu pensamento.
"O cheiro é de mato com pinheiro.
E tem vento, e silêncio.
É bom de se isolar do mundo. Eu gosto."
"E você lá já foi acampar, por acaso?"
"Não, mas eu fui num parque muito isolado uma vez, faz tempo."
Ele fechou os olhos.
"Eu nunca esqueci.
Talvez seu mar seja a minha floresta."
"Tirando que o litoral é melhor que um parque na pê-quê-pê."
"Talvez seja. Eu sou idiota, você que diz."
"É sim."
Daniel não demonstrou o interesse que sentia em tal floresta, nem o desejo súbito de realmente substituir seu mar pela natureza de Leo.
"Eu levei umas três comics."
"Hm?"
"Pro parque. Eu levei três comics, dessas grossas.
Andei até bem longe de onde os meus pais tavam tirando fotos de ... Sei lá, monumentos acho.
Eu levei uma bronca depois, mas valeu à pena.
Eu li inteiras, e sobrou tempo pra andar mais. E era... Era bom.
Eu não precisei de fone, eu só ouvia tipo... O vento e o barulho que o cascalho faz quando você pisa, sabe?
As comics não eram tão boas, eu não lembro bem.
Mas foi um bom dia."
"Quantos anos você tinha?"
"Acho que uns treze."
"Foi quando você mudou, então."
"É, acho que sim. Eu era meio solitário."
Leo perdeu o sorriso, suspirando, olhos fixos no teto.
"Mas a floresta foi boa.
Era como ser parte de algo maior, mas ao mesmo tempo eu não sentia que existia, ou fazia qualquer diferença.
Era só eu, o parque... E meus caras bombados explodindo cabeças de zumbis."
"Caras bombados."
Daniel repetiu, arqueando as sobrancelhas.
"Essa história era terrível."
"Imagino."
"Acho que eles tinham metralhadoras."
"Civis com metralhadoras, um bom plano."
Daniel brincou, observando Leo, que forçou um sorriso.
"Eu não gosto daquela época."
Admitiu.
"Eu sei que não."
O outro lhe confortou.
"Mas a floresta foi boa."
"Eu sei."
"É, aquela floresta foi legal."
"Você esgotou a sua cota de Daniel gentil pelo mês inteiro, tô avisando."
Daniel ameaçou, tentando conter o sorriso.
"Uma floresta quieta, com chão de pedrinhas, pinheiros altos... Eu, meus zumbis..."
Leo continuou, apenas provocando.
"Ok, você é um imbecil."
Concluiu o amigo.
"Eu gosto quando você me escuta."
"Preferia ser surdo do que ter que ouvir mais uma palavra sobre cabeças de zumbis explodindo."
"Você quer ouvir sobre a floresta, então?"
Ele riu alto, sendo acompanhado por Daniel, que o empurrou com carinho.
"Você já falou muito! É minha vez."
Brincou.
"Ok."
"Sério?"
"É, eu também gosto de quando você fala."
Daniel hesitou, desviando o olhar.
"...Tá..."
"Pode falar do litoral."
Leo virou-se para o amigo novamente, sorrindo.
"Não tenho tanto pra falar quanto você.
É impossível alguém tagarelar nesse nível."
"Sim, ok.
Conta o que você lembra."
Leo incentivou pacientemente.

No próximo invernoOnde histórias criam vida. Descubra agora