67 ° Dias de luta...

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Paloma,

Acordo mais uma vez no meio da noite, enjoada e com fortes dores no estômago. Dores essas que nunca passam. Com o que resta das minhas forças, desço silenciosamente da cama, evitando acordar o Samuel. Ele tem trabalhado dobrado, o sinto bem mais cansado que o normal e não quero que ele acorde no meio da madrugada por minha causa.

Acendo a luz da cozinha, tendo o cuidado de não esbarrar em nada, e pego a jarra de água na geladeira. Praticamente desfaleço na cadeira da mesa redonda, localizada no centro do cômodo. A bandeja sobre ela foi revestida com um pano de prato, contendo copos de cabeça para baixo. Manias da minha mãe...

Ela antecipou sua vinda para o Liberdade assim que soube da minha doença. Tem cuidado de mim, ajudado no que pode e, às vezes, quer ajudar até naquilo que não compete a ela. Me acompanha nas quimios, limpa a casa, cozinha, lava nossas roupas e não me deixa nem fritar um ovo.

Sendo sincera, e talvez até soando um pouco ingrata, assumo que gostaria de poder realizar minhas tarefas, limpar minha própria casa e preparar minha própria comida. Eu sempre sonhei com esse momento. Não que essas fossem minhas únicas ambições na vida, mas eu gosto muito da ideia de independência, ter meu canto e poder tomar conta dele sozinha. Inclusive, fazer as coisas do meu jeito, como nunca pude fazer morando com meus pais e minha única irmã, que ainda é uma criança.

Quando Samuca e eu viemos morar juntos, senti que finalmente poderia ser a dona da minha casa (no sentido literal) e era um grande prazer organizar, limpar, lavar e cuidar de tudo. Claro que o Samuca me ajudava, mas a questão é que eu gostava de ter a maioria dos serviços domésticos sob meu controle e vontade.

É diferente cuidar do nosso próprio lar, acaba se tornando especial. E eu também podia lavar os pratos antes dos copos, sem ter minha mãe me reprimindo ao lado. Essa parte era a melhor.

Ligava o som alguns volumes mais alto do que os vizinhos provavelmente gostavam e me empolgava limpando até os cantinhos mais escondidos da casa.

Eu tinha saúde para isso, o que já não tenho muito agora...

Bebo a água e seu gosto se une ao gosto das lágrimas que percorrem o meu rosto vagarosamente. As dores me distraem dos pensamentos; são insuportáveis, mas as suporto.

Corro até o banheiro com a mão cobrindo a boca, sentindo a água ser rejeitada, assim como quase tudo que me proponho a comer. Me debruço sobre o vaso e lá se vai a única coisa que consegui ingerir hoje... um pouco de água e uma maçã.

Os efeitos da quimio são esses e são horríveis... náusea, fraqueza entre tantos outros.

Lavo o rosto na pia, trêmula pela falta de alimentação e pela força que meu corpo usa para expulsar o que não lhe agrada. Minha imagem refletida no espelho é de uma garota exausta, magra, pálida e doente. Essa garota não sou eu, essa imagem difere muito do que eu era e eu não a aceito como sendo minha.

Evito espelhos por isso, não quero ver a minha deterioração. Meus cabelos, antes volumosos e brilhantes, a cada dia ficam mais ralos, mais opacos. Os encontro por todo canto, aos montes. Estão caindo cada vez mais e mais.

É inevitável para alguém que enfrenta um tratamento desses o questionamento, a dúvida: Será que vou vencer essa batalha?

O medo de morrer infelizmente existe e é maior do que qualquer pensamento positivo que nos obrigamos a ter. No fundo, em nosso interior, a morte se torna uma sombra a nos atormentar constantemente. Os pensamentos variam entre aquilo que poderemos chegar a não ver, não ter, não viver. Enquanto outro lado nosso, o lado da esperança, trava uma batalha para defender a tese de que não devemos se deixar abater.

Love no Morro da Liberdade 1Onde histórias criam vida. Descubra agora