92 Santo forte!

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Donga,

Acordei quatro dias após a cirurgia. Estava lento, desnorteado. Demorei um tempo para me lembrar do que aconteceu e para reconhecer o quarto em que eu estava — um quarto de hospital.

A memória foi se recuperando gradualmente, reconstituindo a cena que vivi antes: um arrombado segurando uma faca, partindo para cima da Eloá, e os gritos apavorados dela...

Depois, me lembrei de um momento que deveria ter vivenciado enquanto estava desacordado. Era uma memória mais recente e mais fácil de emergir.

A voz dela foi muito real ... Ou eu estaria viajando? Delirando?

Em meio ao escuro e ao vazio do nada absoluto, sua voz ecoou de algum lugar na minha mente, dizendo estar comigo, mas que precisaria ir. Lembro de ter me angustiado, de tentar falar e pedir que ela não fosse. Eu fiquei sozinho na penumbra mó tempão e ela me despertou. Não queria voltar aquele estado de novo.

O eco foi perfeito em minha cabeça. As palavras distantes e meio vagas continham o som da voz conhecida, garantindo que não iria longe; que iria voltar. Era muito real. Não foi sonho, nem delírio. Era ela!

Não lembro de ouvir mais nada nem antes e nem depois desse episódio. Mas eu sabia, que, se eu estivesse morrendo, de algum modo, aquela voz seria a última coisa que eu levaria comigo.

Não me surpreendeu quando, ao abrir os olhos, seu rosto foi primeiro que vi. Ele era muito mais nítido do que as imagens vagas e distorcidas que surgiam vez ou outra nas trevas da minha inconsciência.

Ela estava deitada na cadeira ao lado da maca, encolhida, dormindo feito pedra.

Eu só pensava que, se eu não tivesse sido rápido, se eu não tivesse corrido a tempo pelo beco quando escutei seus gritos, ela poderia não estar viva. 
Só pude agradecer a Deus naquele momento por eu e ela estarmos vivos.  

Não quis acordar-la. Precisava de tempo para botar as ideias em ordem. E precisava observar melhor seu rosto caído de lado sobre o dorso da mão; as pernas encolhidas no acento, junto ao peito. Meu coração se encheu de ódio, papo reto. O desgraçado quase chegou nela, quase me tirou a única pessoa que...

Caralho, mano!

Parei para refletir, ainda que grogue — certamente de remédios — no que ela significava pra mim. Era muita coisa.

Apenas o fato de acordar e ela estar do lado, de ter passado por aquilo comigo, me permitia manter a mente fria e me proporcionava certa alegria. 

Afinal, eu matei o cuzão! - isso me confortava. 

No primeiro momento, corri para ele, o atirei no chão e tentei pegar minha arma. Mas tinha que desviar da lâmina afiada que ameaçava se alojar em mim. Não recordo dos detalhes, foi muito rápido. Porém, me esforçando um pouco, consigo rever claramente o olhar apavorado daquele arrombado. " O que eu fiz? ", seus olhos arregalados diziam.

Ele sabia o que havia feito. Acabava de assinar sua sentença. Mesmo que ele me matasse, eu não morreria sem antes perfurar seus miolos com uma bala.

O tiro ainda retumbava no meu ouvido, mas o que mais me era presente, era a sensação gelada do aço inoxidável se afundando na minha barriga.

Talvez fosse fatal. Eu iria morrer ali.

Tantos reflexos, tantas trocas de tiro, tantas vezes escapando por pouco da morte, e agora ela iria me levar de todo jeito, da maneira mais banal.

Minha vida seria tirada por um merda qualquer. Não por um tiro de Ak ou por uma bala dos canas, mas por uma faca. A porra de um objeto frio que atravessou minha pele e perfurou meus órgãos.  

Love no Morro da Liberdade 1Onde histórias criam vida. Descubra agora