29

19 1 0
                                    

O cansaço começara a chegar, arruinando ele todos os planos que tinha em mente de possivelmente ficar acordada a noite inteira.
Depois de eu e Calum ficarmos a discutir opiniões, revolvidos pela ligeira corrente de ar, ainda tivemos tempo de dar mais um passeio pela praia, onde eu fui molhada por ele que se atreveu a meter na água e salpica-la para mim.

"Anda! Não tens coragem?" Desafiava-me ele, de jeans pretos e t-shirt branca, dentro da água, com o seu casaco de couro e sapatilhas no areal.

"Não me vou estar a molhar. Estou com roupa!" Protesto, ainda que com vontade de ir para a beira dele.

Cada vez mais ele se ia afastando ficando com a água pelo tronco.

"Não tens roupa para amanhã? Quando chegares a minha casa pões essa a lavar e a secar." Sugeriu.

"Está frio!"

"É só um bocado! Anda! Tenho mantas no carro."

"Já estás longe demais, Calum. Eu não sei nadar!" Gritava-lhe devido à longevidade em que ele se encontrava.

"Não seja por isso. Eu vou-te buscar." Dizia ele, voltando para o areal a passos largos.

"Eu vou ficar doente." Choraminguei já com ele em frente a mim. Estava com medo de ir para a água.

Sem mais nada dizer Calum voltou a pegar em mim e colocou-me em cima do seu ombro. Os gritos estridentes dados por mim começaram com bastante fluência. Ele, em vez de me pousar no chão e parar com estas pontadas de medo que invadem o meu coração, ria-se e continuava o caminho até à água. Entrou pelas pequenas ondas dentro e eu já consegui sentir o gelo da água.

" Pousa-me! Prefiro entrar na água fria do que estar no teu ombro!"

"Porque é que tens tanto medo? Eu não te deixo cair!" Disse ele a fazer beicinho.

"Porque eu sou pesada demais para me aguentares. Pára com as perguntas e pousa-me."

Agora, bem depois de eu ficar encharcada e gelada; bem depois de eu ter sofrido com os olhares perturbadores de Calum aqui estamos nós, embrulhados em mantas e a comer um gelado que ele foi comprar a uma gelataria que por milagre ainda se encontrava aberta. Da janela do quarto eu via-o entrar por ela dentro, completamente molhado, a ser olhado de lado por quem estava lá dentro.

Quando ele chegou à minha beira, com um gelado em cada mão, foi atacado por uma crise de risos que me possuía. Não foram precisas perguntas para Calum saber o porquê de eu estar assim.

- Tu não és tão pesada quanto pensas. - Enunciou após alguns momentos de deliberação sobre as palavras que deveria usar. - Porque achas isso?

Como explicar aquilo que nunca tive coragem de gritar? Como lhe dizer todos os tormentos que passei e passo com os preconceitos sobre o meu corpo? Mantive-me calada em vez disso. Continuei a comer o meu gelado. Na verdade acho que nem o deveria estar a comer.

- Porque te subestimas tanto, Faith?

- Eu não me subestimo. Eu vejo-me como eu sou e não como os outros me fazem ver quando dizem que eu sou linda ou coisas desse género. Eu só não me sigo por aquilo que eles dizem, e sim pelo que vejo ao espelho. Pelo que a minha mãe me fez ver ao espelho. - Suspirei.

Há medida que ia cuspindo estas simples palavras, a vergonha aumentava, o que me fez virar as costas a Calum, olhando agora pela janela do carro a admirar as estrelas no céu. Pelo menos a tentar fazer isso. A tentar abstrair-me da realidade.

O céu estava tão bonito. Essa era a única realidade que não magoava porque as estrelas brilhavam tanto. Talvez elas sejam as antigas almas de pessoas como eu, cuja alma verdadeira já morreu. Talvez a minha alma esteja ali algures a brilhar por mim.

- Não sou a rapariga perfeita. Nem tão pouco tenho algo de perfeito tem mim. Os meus dentes tem alguns espaços; o meu cabelo é um nojo todos os dias, quase sempre parece palha; eu até tenho de usar estas lentes horríveis para não deixar de ver, porque não quero usar óculos e ficar ainda mais pior do que aquilo que eu já sou. As minhas coxas são grandes demais, a minha anca também. Não tenho um corpo espectacularmente magro e bonito como todas as da nossa escola. Sou a excepção no meio de excepções.

- Shiu, shiu, shiu. - Calum põe a mão no meu ombro e o respirar dele é automaticamente sentido contra o meu pescoço. - Olha para mim. - Ainda que se eu não quisesse encara-lo, eu fi-lo, porque as mãos dele eram fortes demais para o meu corpo. O meu corpo que não é frágil de qualquer maneira, embora o seja considerado porque sou mulher, mais pequena, aparentemente indefesa. Só dessa forma sou considerada frágil. - Eu não mudava nada em ti. Não me importa se engordas, emagreces. Não me importa se o teu cabelo está despenteado, solto ou amarrado. Muito menos me importo se os teus dentes são separados ou tens de usar óculos. Faith, a minha mãe sempre me disse uma coisa, e isso foi a razão de eu acreditar que todos conseguimos ser felizes porque: "Somos como somos e nem tu nem ninguém vão mudar isso. Apenas temos de viver dessa maneira. Felizes. Porque tal como 1+1 são dois, no universo existe a tua segunda parte. A tua metade. E ela vai amar-te da maneira que tu fores, desde que tenhas um bom coração."

Responder a um discurso destes é como se responder a uma questão à qual não sabemos a resposta: difícil. Fiquei embasbacada, sem palavras. Isto sensibilizou-me mais do que aquilo que eu já estava. Abriu-me caminho para eu chorar. Como não é esse o meu desejo, os meus olhos encheram-se de água, incapaz de cair, e a minha garganta tinha um nó. Nó esse que estava tão apertado e eu não o queria desfazer. Então toda a minha garganta doía.

- Não chores. Eu estou aqui. Não precisas chorar. - Ele disse, sabendo o que se passava na minha cabeça. - Eu gosto do que tens dentro de ti, Faith. - Calum puxou-me para um abraço, encostando a minha cabeça no seu peito. - Esses sonhos, esse sorriso, essa amabilidade que nem eu consigo ter. Por favor, nunca mudes.

- Não quero mudar. Eu só quero ser bonita. - Choraminguei.

- Tu és bonita, Faith. Tu és uma das pessoas mais bonitas deste mundo para mim. Eu amo tudo aquilo que tu disseste detestar. Para mim isso são tudo conjugações perfeitas e não erros. Para mim tu és a Faith e não uma qualquer.

PAPER SOULS • CALUM HOODOnde histórias criam vida. Descubra agora