Capítulo 34 ☘

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Ouvir aquela voz delicada me trouxe uma sensação diferente, talvez uma sensação de alívio. Todas as pouquíssimas vezes que nos víamos, era somente um breve cumprimento de minha parte e uma resposta programada dela. Depois da breve conversa com Ricardo e uma noite cheia de pensamentos, eu decidi tentar. Confesso que foi muito difícil sair da minha zona de conforto, tudo era tão vantajoso, exceto que se eu quisesse conseguir eu precisaria lutar. No começo dos dias eu procurei cuidar da minha saúde física, e agora me empenho na saúde mental. Recebi uma ótima recomendação de uma psicóloga e terapeuta, Dr. Cristiane Prado. E desde então tenho frequentado as sessões de terapia e reuniões de auto-ajuda. Já faz alguns meses, e ainda não consigo me abrir totalmente, sempre tem uma barreira que me impede de ser 100%. Mas ela diz que isso é normal, sempre tem a timidez e falta de confiança á princípio. E que depois de um tempo e esforço eu conseguiria me abrir totalmente. E eu torço para que ela esteja certa. O primeiro passo já foi dado e você tem todo um percurso à sua frente! Me recordei de suas palavras.

_Senhor? - Fui tirado de meus pensamentos com sua voz

Ela me entregou a minha lista de atividades á concluir enquanto guardava o celular na bolsa.

_Ah, obrigado! - Ela me olhou surpresa e em seguida desconfiada - Eu preciso ir...

_Até mais ver. - Passou por mim e entrou

Caminhei até o meu carro e entrei. Li cada tópico da lista e puts! Era muita coisa. Isso que dá ter sido um idiota a vida inteira! Meu subconsciente não me dava sossego um segundo sequer. E o pior é que é verdade. Não é da noite para o dia que eu conseguiria, mas todos os dias eu tentaria. Muitos irão estranhar essa mudança repentina mas eu não ligo para a opinião dos outros. Contanto que eu pare de me sentir um bosta já é válido. Dirigi até o Odaa (Organização de auto-ajuda) e dei sorte, estava prestes a começar. Me sentei e a coordenadora começou a explicar o propósito das reuniões. Toda semana ela fazia isso pois sempre tinha alguns novatos. Cada pessoa estava sentada em formato de círculo e ela deu a palavra para quem quisesse começar. Ninguém se prontificou, até que depois de alguns minutos em um silêncio ensurdecedor, um homem levantou a mão.

_Muito bem, pode dizer o seu nome e porque está aqui. - A coordenadora o disse e ele respirou fundo antes de começar

_Meu nome é Victor Fernandes. Eu trabalho como empreendedor e tenho uma família linda. Esposa e duas filhas. Tenho a vida perfeita segundo alguns conhecidos mas não é assim que eu me sinto, pelo contrário. Há noites que sem minha esposa ver, eu começo a chorar, bebo alguns remédios, bebida alcoólica e nada parece preencher esse vazio em mim. - Ele começou a chorar - Eu sou um fraco, doutora?

Suas palavras foram como um baque para mim. Ninguém jamais imaginaria que um homem do porte dele passava por isso. A coordenadora começou a explicar que ele poderia estar sofrendo por uma possível depressão e em seguida fez-lhe algumas perguntas e algumas recomendações. Eu ouvia cada palavra atentamente, assim como os dois próximos que falaram de seus problemas. Era incrível a quantidade de pessoas destruídas ali presentes. E eu possivelmente era mais um. Quando deu a hora, eu saí e já aguardava a próxima reunião. Ainda não tive coragem para falar, mas quem sabe da próxima vez. Suspirei e pude esboçar um sorriso. Eu tinha vencido mais um dia, foi difícil mas eu venci. Depois de começar eu já me sentia um pouquinho mais tolerável, mas eu ainda tinha um caminho longo pela frente. Por mim e... por ela?
Sacudi a cabeça espantando as palavras de Ricardo. Eu sou teimoso o bastante para admitir que por ela eu estava assim, mais gente e menos ogro. Sorri ao lembrar do dia que ela me chamou assim. Ô menina petulante! E por falar nela, a avistei saindo do prédio, olhei o relógio em meu pulso e já era quase 22:00. Um pouco tarde para uma mulher andar nas ruas do Rio de Janeiro. Sim mas ela não vai aceitar sua carona! Pensei imediatamente mas afastei essa idéia, afinal, quem não chora não mama. Dirigi até ela que ouvia música em seus fones de ouvido, só notou o carro ao seu lado quando passou uma moto fazendo muito barulho ao seu lado. Ela arregalou os olhos, apressou o passo e eu me aproximei abaixando o vidro escuro.

_Ei? - Ela parou e tirou os fones me observando

_O senhor? - Ela parecia surpresa e eu desci do carro

_É perigoso andar essa hora da noite na rua, sabia?

_O ponto é ali perto! - Apontou para um pouco a nossa frente

_Você não aceitaria uma carona? - Perguntei nervoso

_Não é necessário, o ônibus é daqui a pouco... - Tentou argumentar e eu percebi que ela estava tensa

_Não é incômodo para mim, vamos entre! - Ela olhou para os lados

_É melhor não, senhor! - Ah essa teimosia dela...

_Não quero que nada de ruim aconteça com você...

_O ruim poderia acontecer dentro deste carro, por isso quero evitar. - Sua resposta me pegou de surpresa

_Eu não farei nada com você. Eu prometo! - Ela pareceu acreditar e deu-se por vencida

Ela entrou e eu a acompanhei em seguida a levando para a casa. Era notório o seu desconforto, ela tinha as mãos para frente, mexendo compulsivamente em seus dedos. Sem contar que parecia estar sufocada, além do silêncio desagradável que pairava no ar. Ela olhava para a janela e mexia as pernas freneticamente. É perceptível o quanto a sua presença a afeta, mas de modo ruim pelo visto. A olhei de soslaio e só então percebi. Essa seria a parte mais difícil de todas. Ela é irredutível e eu não tiro a razão dela. Desde sempre eu sou péssimo para ela, ela tem motivos suficientes para me odiar até a quinta geração dela. Mas se ela aceitou a carona, eu tenho alguns minutos para tentar conversar com ela e mostrar um pouco da mim que ela ainda não conhece.

_Quer que eu abra o vidro? - Ela olhou para mim e apenas acenou

Abri um pouco e o ar entrou em meu quarto. Ela deu uma longa suspirada e se ajeitou na poltrona, mas ainda tinha a atenção lá fora.
Ela estava me ignorando, com certeza devia estar torcendo para que chegasse logo e se livrasse da minha presença. Eu não conseguia pensar em nada para puxar assunto com ela, as palavras pareciam entaladas na minha garganta e qualquer coisa que eu pensasse em falar me parecia tão nada a ver.

_E então, como foi o seu dia? - Que merda! Não era isso que eu ia perguntar

Ela se virou novamente e olhou-me com os olhos cerrados. Devia estar me achando um bocó.

_Não precisa se esforçar para puxar assunto Senhor Magalhães. Contente-se com o fato de eu já ter aceitado essa maldita carona, mas isso não significa que precisamos conversar.

_Eu só queria ser gentil... - Desviei o olhar da rua para ela

_Eu conheço muito bem suas gentilezas e se quer saber, peço que me poupe. - Ela cruzou os braços e voltou a olhar para a janela

E eu suspurei e continuei dirigindo. Quando chegamos ao destino dela, eu tranquei as portas e ela já veio furiosa protestar:

_Abra essa droga dessa porta agora! - Exigiu com autoridade

_Só se me responder uma pergunta. - Me virei para ela e sua respiração já estava ofegante

_Diga logo. - Retrucou com sua raiva agora contida

A olhei e toda a coragem de segundos atrás se foi. Ela aguardava pela tal pergunta que não veio graças a minha covardia.

_Você estará lá em casa amanhã? - Ela soltou o ar que prendia e piscou algumas vezes

_Só se o senhor me demitir que não! - Era incrível o sua aspereza nas palavras

_Eu nunca faria isso! - Abaixei a cabeça e abri as portas

_Você é imprevisível! - Saiu e fechou a porta - E eu não confio em você!

Pude ouví-la falar antes que se afastasse e entrasse no prédio.

_Ô menina, você será o propósito mais difícil da minha vida!

Pisei no acelerador e fui para a minha casa. Tomei banho e deitei sentindo-me mais leve em relação a algumas coisas e mais exausto em outras. Olhei para o teto e me virei na cama. Por mais cansado que o meu corpo estivesse, eu não conseguia dormir, e pelo visto até o sono ia brigar comigo hoje.




Edit ☘

O outro lado do amorOnde histórias criam vida. Descubra agora