Ainda consigo ouvir a voz na minha cabeça. Cortante. Ameaçando-nos. Ela ecoa como em um túnel pelos meus pensamentos enquanto penteio o cabelo.
Ontem à noite, pegamos novamente o taxi cinza e voltamos ao barco. Desabei na cama do meu compartimento sem falar mais palavra alguma, parecia haver um tambor na minha cabeça. Ainda parece. Só que acostumei.
Os acontecimentos da noite passada só não rodam na minha cabeça porque, na verdade, não vi nada, pelo menos, nada daquilo que me atormentou. Minha língua está muito dolorida, consequência das vezes que tive que mordê-la para não gritar, principalmente quando o louco do Nathan começou a conversar com Nyx, já que quase gritei o nome dele um bilhão de vezes, mordi tanto a língua que ela só parou de sangrar quando me deitei.
Consegui manter minha voz firme na caverna, o que já foi um mérito e tanto, mas se não fosse a incrível descoberta de Nathan sobre seus próprios poderes – e a velocidade que usou para sair de lá nos arrastando – estaríamos todos mortos. O que eu estava pensando? Sinto-me tão envergonhada que, por mais que esteja acordada faz duas horas, não saí do quarto.
Acordei muito cedo para quem foi dormir de madrugada. Mas quem poderia dormir depois de acordar de um sonho como aquele?
Quando fui me deitar, me joguei tão fortemente na cama que acabei esbarrando as costas da minha mão num prego. Não era afiado, mas com a força em que me joguei, acabei por cortar minha mão. Um filete de sangue deveria ter saído daquela linha horizontal. Deveria. Mas o que saiu não foi sangue. Não sangue humano. Minha mão começou a ser manchada por um fluido dourado brilhante e antes que eu pudesse piscar, cicatrizou. Chorei até cair no sono.
Sonhei que estava num velório. Não era o meu velório. Nem de algum amigo meu. A pessoa que morreu eu nem conheço, pelo menos ainda não. Mesmo assim, foi horrível. Ainda consigo sentir o cheiro das rosas brancas e margaridas. Ainda consigo ver as pessoas chorando. Eu demorei, mas constatei que a pessoa que havia morrido era um neto meu. Estava no velório do meu neto. Ele havia morrido de causas naturais. Nada na situação parecia correto. Eu fui até uma fonte e me olhei. O que eu encarei foi uma mulher linda de vinte anos que exibia um brilho anormal. Uma deusa. Imortal.
E então acordei. Enterrei minha cabeça no travesseiro e voltei a chorar. Chorei porque não sabia mais o que fazer. Ainda não sei. Eu me controlei, eu fiz todo esforço que pude para não ativar meus poderes, e mesmo assim, o que vi escorrei da minha mão foi icor. Vou ser imortal. Vou ver todos que amo morrerem, mas continuarei aqui. Sozinha. Sofrendo. Sem saída.
Isso não é justo. Não há mais o que possamos fazer. Eu vou ter que tentar com todas as forças ter uma vida comum ou vou ser eternizada. Ou talvez por mais que eu tente, minhas tentativas serão em vão e vou me tornar imortal de qualquer jeito. Perece uma benção, mas é um castigo. Não quero obrigações eternas. Não quero nada disso. Eu quero morrer. Por mais estranho que isso pareça. Não quero morrer agora, acho, só... quero saber que vou morrer um dia, e um dia não muito longe do período de um século, talvez logo...
Sou desperta dos meus devaneios por uma batida na porta.
- Eu não quero conversar, Sophie. Também não estou com fome – digo.
Mesmo assim ouço a porta ranger. Continuo com a cabeça enterrada no travesseiro. Não quero ver ninguém, nem mesmo minha melhor amiga.
- Tem certeza de que não quer conversar? – Essa não é a voz de Sophie. – Eu acho que te faria bem falar com alguém.
- Não quero falar sobre isso, Nathan – afirmo.
- Se continuar dialogando só com si mesma vai se afogar nos próprios pensamentos.
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Sangue Divino
AdventureUma garota que foi criada pela avó é raptada e acorda em um estranho acampamento, onde descobre que seus pais estão vivos e mais perto do que ela imaginava, melhor ainda, são dois dos maiores heróis atuais. Sua vida esconde mais segredos e sofriment...