chapter 𓄿 one

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Escuto somente ecos, que vem se aproximando de mim à quilômetros por hora. O trem vem correndo nos trilhos para alcançar a plataforma que estou esperando. Olho para os lados, buscando mais passageiros, mas fico triste em perceber que estou sozinha. Por hora.

Sei que ele vai aparecer. Como sempre, eu sinto na minha espinha aquele aviso: ele está próximo. O mundo está escuro, sempre em tons de preto e cinza escuro, mas o trem que chega é de um prata tão reluzente que tenho que fechar meus olhos por um segundo.

Logo, já estou dentro do vagão 5, que também está completamente vazio. O trem começa a andar num impulso inacreditável. Eu me seguro em uma cadeira alta, porque senão fizesse, estaria no chão agora.

As coisas passam de pressa quando olho nos vidros transparentes. Lá longe, depois de uma alta colina à minha esquerda, vejo um corvo voando. Ele vem se aproximando, e consegue voar na mesma velocidade que o trem, uma coisa impossível.

Volto à olhar para frente, e eu o vejo. Sempre com as vestes mais negras possíveis, o homem de cabelos pretos e olhos azuis me encara. Seu lábios, hoje como nunca, estão vermelhos. Ele me encara sem demonstrar qualquer coisa, mas eu sinto que preciso tocá-lo.

É sempre assim, sempre esse desejo. Me aproximo dele, sabendo que ele pode se virar à qualquer momento e ir embora. Mas das últimas vezes que eu o vi, o homem me deixou tentar encostar em seu rosto.

Agora, eu sinto sua respiração pesada no meu rosto, e sei que ele está com frio. Uma ventania desesperada começa, meus cabelos loiros são jogados para todos os lados, e eu ergo minha mão. Assim que eu consigo tocar seu rosto, eu acordo.

Dessa vez foi tão real, o toque. Eu queria poder voltar, queria tocá-lo, perguntar por que ele me assombra à tanto tempo, por que não me fala quem é.

Saio da cama, observando o meu pequeno quarto, que possuía apenas uma cama de solteiro, um guarda-roupa com portas quebradas, e uma escrivaninha lotada de livros e materiais de pintura. Um trovão, longe ao céus, me assusta e eu acabo olhando para o lado, onde em cada centímetro da parede há diversas pinturas de vislumbres de sonhos, e vários rostos dele.

Olho no relógio, são 4 da manhã. Saio para o banheiro, tomo um banho quente, e começo a arrumar a bagunça no apartamento. Há roupas sujas que vão para a lavanderia, pratos com restos de pizza que são limpos e guardados no armário. Passo um pouco de desinfetante no chão do banheiro, e depois lavo tudo, adicionando um pouco de um produto cheiroso. Acendo um incenso na sala e o deixo queimar.

O sol já nasce, e escuto um barulho de porta abrindo. Nala Highway, minha melhor amiga e companheira de apartamento, acorda com o rosto inchado e o cabelo ruivo bagunçado.

- Bom dia.

- Bom dia, mas para você parece que não, hein? Já limpou a casa toda, então deve ter tido um sonho ruim dessa vez. - Ela se escora na parede do corredor.

- Por aí. Vai se arrumar, já são quase 7 horas!

Ela sai abrindo a boca de sono para o banheiro, e depois e alguns minutos, ela volta à cozinha-sala vestida totalmente com um conjunto social azul escuro. No crachá, está escrito "Nala Highway - Adm."

- Okay, pode começar a contar. - Ela se senta no balcão enquanto eu sirvo panquecas para ela. - O bonitão apareceu?

- Para de chamar ele assim! - Reviro os olhos. - É um rosto bonito, mas é do mal. Ele me persegue, não me encanta.

- Ata! - Ela come um pouco. - Você acorda molhada na cama, dizendo que sempre ele aparece num trem, ou num avião, até mesmo numa carruagem, sempre há uma nova paisagem, e ele está na sua frente.

- Pera, você disse molhada? - Eu a indago e sento em sua frente. - Como você...

- De suor, Hailey! S-U-O-R! Não precisava saber do resto, obrigada. - Ela se levanta, mal tinha tocado nas panquecas que fiz. - Tenho que ir. Conversamos mais tarde, se der. Tenho que fazer umas horas extras hoje.

Nala sai dali arrumando o cabelo, e então eu fico só, como todo dia. A ruiva tem um estágio numa empresa perto da faculdade de administração, enquanto eu, trabalho num Café perto de casa. Faltam apenas dois semestres da faculdade de administração e aí, eu poderei passar mais tempo com minha arte.

Enquanto arrumo a bagunça de café-da-manhã, eu penso em como as coisas vão ser daqui para frente. Vou me formar, conseguir um trabalho de meio-período, mesmo que seja no Café (mas quero ser pelo menos a gerente), e então, desenharei, cantarei e sonharei pelo resto do dia.

Às 9 horas, eu saio de casa vestindo uma jardineira desgastada, com um bolso rasgado, por baixo uso uma blusa listrada amarela e preta, e uso all-star amarelo. O Café fica há dois quarteirões e chego nele rapidamente, cumprimentando todos.

- Bom dia, abelhinha. - Kayke, o meu gerente, me cumprimenta. Ele me chama assim porque os funcionários devem vestir amarelo e preto, enquanto ele apenas veste preto, e tem um crachá chique. - Faça um café para mim, com duas rosquinhas de morango com bastante, bastante, chocolate belga, e traga na minha sala.

Ele pisca e meu estômago revira. Infelizmente não há o que fazer senão o pedido dele. Eu cantarolo enquanto mexo minhas mãos num serviço que já sei de cor. Por fim, entrego não só esse pedido, mas 20 antes do almoço.

Me escoro na porta-dos-fundos, pego um pouco do meu almoço, "dado"/cobrado no dia de pagamento pelo gerente, e como ele todo. Olho no relógio, ainda tenho mais 20 minutos de intervalo. Então eu escoro minha cabeça na parede à minha direita, e eu sonho.

Em minha volta há apenas ar, o metal do avião range mas ainda aguenta a altitude. É um avião de carga velho, e não há nada aqui além de caixas vazias. Olho pela única janela que traz um vislumbre de luz do sol, e vejo picos de algumas montanhas beijadas pela neve. O corvo aparece novamente, gritando ao céus, mas não se aproxima.

Então, eu sinto o arrepio. Eu olho para frente, e dessa vez o homem não está ali, mas sim uma mulher loira. Ela me chama, eu sinto isso, do mesmo jeito que o homem me chama. Eu vou até ela lutando contra o vento, que quase me derruba.

A mulher tem cabelos curtos, e veste um longo vestido preto de couro. Ela sorri para mim, e estende a mão, me entregando um livro.

A capa do livro é vermelha, e há apenas uma coisa escrita em dourado, um dourado gasto e quase desaparecido: Sonho. Olho para ela confusa, e uma sombra negra aparece em seu olhar, e em todo o meu redor. A escuridão engole todas nós, e eu mal consigo enxergar, o vento machuca meus ouvidos e no fundo, escuto barulho de areia caindo.

De trás da mulher, surgem asas. Não angelicais, ou acolhedoras, mas sim negras e sujas de sangue, como as de um morcego. Eu grito, mas não consigo soltar o livro de minhas mãos.

Eu acordo assustada. Meu coração está a mil. É a primeira vez em dez anos que eu não sonho com ele, mas esse novo rosto me assombra. A porta se abre e eu me levanto num salto, olhando para Kayke furioso.

- Atrasou! Dez minutos! Pare de ler e venha logo trabalhar! - Ele bate q porta.

Olho para minhas mãos, e lá estava o livro dos meus sonhos. Sonho, é o título. Eu olho confusa para os lados buscando alguma resposta, mas não há ninguém. Meu estômago revira e eu corro para vomitar no banheiro. Me limpo toda, com a maior pressa possível, e então eu volto a trabalhar, sempre achando que estou vendo nas sombras o rosto da loira e escutando o barulho infernal de areia.

PARADISE  ༅ Tʜᴇ SᴀɴᴅᴍᴀɴOnde histórias criam vida. Descubra agora