Desistir

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Eu andava eufórica a dois dias, cantando e sorrindo pelos cantos. Aquele beijo não saía da minha cabeça. Suas mãos em mim, o calor vindo dele, seu olhar, seu cheiro de hortelã e madeira, ou talvez canela? Ah, eu precisava sentir seu cheiro de novo, não só disso, precisava beija-lo de novo. E o mais importante, precisava saber se ele estava tão feliz quanto eu.

Mas ele não estava em lugar nenhum. Ele devia estar na casa da avó mas ele era um padre e dois dias sem vir a igreja não era normal.
Precisava perguntar a alguém, a madre estava fora de questão já que eu tinha ganhado um puxão de orelha dela - literalmente.
O padre realmente não era adepto a mentiras mas parece que ele omitiu que retribuiu e com muita paixão ao meu beijo.

"Irmã, irmã. Espere!" Infelizmente era Loretta que passava mas eu não ia me deixar abalar.

"O que você quer?" Sua cara de limão azedo quase me fez desistir mas eu queria muito saber sobre ele.

"Por que o padre não vem mais aqui? Já acharam um substituto?" Meu coração falhou ao perguntar isso. Ele só tinha 10 dias aqui mas pra mim o mês estava correndo muito rápido.

"Do que está falando? Ele está a dois dias aqui. E não, ainda não achamos um padre fixo." Irmã Loretta me olhou desconfiada. "Por que a curiosidade? O que você está aprontando, garota?"

"Como assim aqui? Eu moro aqui, como eu não sabia disso?"

"Ele está num lugar em que a gente não pode entrar enquanto ele está lá. No quarto dele." Ela me deu as costas mas eu fui atrás dela.

"Impossível. As pessoas tem suas necessidades, certo?" Loretta parou bruscamente e cruzou os braços me encarando com tédio. "Ele não come?"

"Ele está de jejum, garota. Talvez devia aprender alguma coisa com o padre."

"Jejum? Ele não está gordo." Na verdade, pelo que pude tocar, ele estava perfeito.

"Daí-me paciência, santo Deus! Ele está em oração e por isso jejua. Ele é realmente um exemplo." E se foi, altiva.

Eu fiquei um tempo parada no meio do corredor pensando em toda essa informação. Ele estava orando, até aí nenhuma novidade, mas isso de jejum era estranho.
Decidi esperar até que suas orações terminassem para que eu pudesse finalmente vê-lo.

O problema é que mais um dia se passou sem que ele desse as caras. Alguém podia mesmo ficar três dias orando? E sem comer!?
Coloquei um shortinho jeans e uma camisa larga verde e limpei todos os dormitórios. Madre Fátima estava me punindo pelo beijo mas eu não discutiria isso, tinha valido a pena. Eu limparia até o telhado se isso me desse mais daqueles lábios.
Depois do almoço eu pude descansar e pensar. Ontem tinha limpado os banheiros e o pátio, hoje limpei os dormitórios e no primeiro dia de castigo, que sucedeu ao beijo, eu tinha limpado a igreja. Faltava um lugar pra eu limpar e talvez isso me ajudasse a vê-lo.

Peguei um balde e uma vassoura, coloquei um lenço na cabeça pra tudo ficar mais convincente e fui em direção ao seu quarto.
Já ia bater quando o balde em minha mão encostou na porta fazendo abrir uma fresta.
O padre Oskar estava ajoelhado no chão, de frente pra cama com os olhos fechados e as mãos juntas enquanto orava.

"Ajuda-me meu Deus, ajuda-me. Não sei como seguir. Não sei como continuar seguindo por esse caminho." Ele estava chorando e o meu coração doeu. "Juro que não sei. Me mostre o caminho, me dê forças, meu Deus. Ajuda-me pois não sei como continuar depois daquele... depois de tê-la conhecido."

Prendi a respiração. Ele falava de mim.
Dei um passo para trás e encostei a porta. Então era por isso que ele orava!? Eu estava feliz enquanto ele estava sofrendo!? Que idiota que sou. Segurei as lágrimas e guardei a vassoura e o balde, tirei o lenço da cabeça e me joguei na cama.
Eu estava a dois dias cantando pelo convento e ele estava privado de comida por minha causa. E água? Ficar sem água fazia parte do jejum? Essa noite eu definitivamente não dormiria bem...

A noite demorou a passar, levantei como se tivesse uma pedra nas costas e fui ao banheiro. As bolsas debaixo dos meus olhos demonstravam que se eu tivesse dormido por duas horas era muito.
Não conseguir tomar o desjejum com as irmãs então me levantei da mesa e fui ver se o padre já tinha terminado aquela loucura. Ele precisava comer e eu precisava dormir.

Bati na porta e como não houve resposta, eu entrei, e dei de cara com o padre dormindo.
Ele não dormia até tarde, quando ficamos naquele motel ele disse que levantava cedo.
Me aproximei e vi que ele estava suado.

"Padre?" Sussurrei. "Padre Oskar?"

Coloquei a mão na sua testa e ele abriu os olhos.

"Padre, o senhor está bem? Está queimando..."

"Eu passei a madrugada orando e nem me dei conta, quando fui dormir estava fraco demais, devo ter pegado um resfriado. Não se preocupe." Sua voz estava rouca e eu quis muito cuidar dele. "Eu vou ficar bem, você precisa sair daqui ou vai arrumar problemas."

Sai dali e fui pegar uma bacia com água da torneira e um pano. Encontrei a madre com Loretta em seu encalço e pedi algum remédio para o padre.
Elas arregalaram os olhos mas eu não fiquei para seus questionamentos, voltei para o quarto do padre.

"Maine? Você não gosta muito de obedecer, não é?" Ele estava branco mas seu esforço para parecer bem era louvável. "O que te deram quando criança, leite de cabra?"

"E vo...o senhor? Por que ficou sem comer? Não sabe que é uma loucura?"

"Foi irresponsabilidade da minha parte, eu exagerei. Sempre faço jejum mas é esporádico." Ele tentou se sentar mas não conseguiu.
Ele estava muito fraco e eu senti meus olhos arderem. Era minha culpa, droga.

"Eu te ajudo, espere." Tentei falar sem chorar, porém sem sucesso.

"Por que está chorando se eu já disse que estou bem?"

Não queria responder, só balancei a cabeça. Admitir em voz alta que eu era a responsável por ele está se martirizando não era fácil.
Assim que ele se sentou, molhei o pano e coloquei em sua testa.

"Isso vai abaixar sua febre."

"Maine, olhe pra mim." Ele pegou o pano da minha mão e tirou de sua testa. O olhei. "O que aconteceu?"

"Seus olhos são lindos, mesmo quase se fechando eles são lindos. O azul parece que foi pintado a mão."

"E foi. Por Deus." Ficamos em silêncio por um segundo. Eu não queria ter falado sobre seus olhos, não nesse momento, mas foi inevitável.

"Maine, você ainda não me disse por que está chorando."

"É minha culpa...o beijo..."

Ele não me deixou terminar.

"Não, não é." Ele olhou para suas mãos e depois voltou a me olhar. "Maine, eu sou um padre e bem mais velho que você, minhas responsabilidades são minhas e só minhas."

"Eu ouvi você orando. Você falava sobre mim. Eu sei que o beijo te fez fazer isso. Eu não devia..."

"Não, você não devia." Ele suspirou. "Mas eu não devia bem mais. Isso não é culpa sua, Maine." Ele limpou a garganta e continuou: "Por favor, pare de chorar, está me matando."

Mas eu não conseguia, não só por ele está fraco, e não interessava de quem era a culpa, mas porque a realidade batia na porta. Se apenas um beijo era impossível e causava um estrago desse tamanho, que esperança para um futuro juntos eu tinha?

"Eu...só quero que me desculpe, eu...fui imatura e estúpida..."

"Você não é estúpida..."

"Me deixa terminar. Eu não devia ter feito uma coisa daquelas, isso não vai se repetir. Você veio aqui pra ajudar e eu só complico sua vida. Não nego que você mexe comigo de uma forma absurda mas...eu... Não vou te perturbar mais."

Olhei mais uma vez para seu rosto branco como um papel e saí dali ao mesmo tempo que a madre entrou junto com o médico David.
Não parei pra falar com eles, não queria explicar o por quê de eu estar chorando.

Voltei pro meu quarto e abri as janelas, respirando o ar fresco daquela manhã. Ao contrário do meu humor, o dia estava alegre e bonito.

Eu não sei como mas eu jurava, não seguiria em frente com esse sentimento.

Eu desisto dele. Por ele.

Padre NossoOnde histórias criam vida. Descubra agora