Cresci numa família estruturada e feliz, com um pai sereno e compreensivo, uma mãe alegre e um irmão mais velho brincalhão. Sempre me senti amado e acolhido por todos e nunca conheci a tristeza até os 12 anos quando numa viagem de avião meus pais sofreram um acidente fatal, deixando eu e Otávio com nossa avó materna Elena.
Vovó Elena tinha o sorriso doce da mamãe mas não era delicada como ela, as vezes até bruta demais e não se apegava muito as regras de como cuidar de crianças, deixando um Otávio revoltado de 15 anos andar solto com amizades discutíveis. Já eu fiquei recluso em casa e só saía aos domingos onde, estranhamente, a vovó nada cristã ia a missa e nos obrigava a ir também, apesar de que só conseguiu fazer Otávio ir duas vezes.
No fundo acho que vovó se preocupava conosco, a sua maneira.
Um dia, o padre precisou de um ajudante na missa, já que o seu coroinha estava doente, e vovó empurrou um garotinho ruivo do seu lado para que este fosse escolhido e me deixar de fora, já que sempre fui extremamente tímido. O tiro saiu pela culatra pois o garotinho caiu com o empurrão da vovó e eu rapidamente o ajudei a se levantar, ganhando a admiração do padre João e sendo escolhido como ajudante e seu coroinha oficial logo depois que o menino doente que antes ocupava meu lugar teve que sair da cidade com os pais.
Sempre fiz tudo que me pediam, não querendo deixar ninguém triste ou decepcionado comigo, mas isso não adiantava com meu irmão pois ele me culpava pela morte dos nossos pais dizendo que precisavam de férias por eu aprontar demais e cansar muito eles.
Talvez fosse verdade, talvez não mas eu nunca me irritei com Otávio, afinal além de ser mais velho ele também sentia a mesma dor que eu sentia, ele sentia falta do abraço do papai, sentia falta das músicas que mamãe cantava.
Só tinha uma coisa que eu sentia falta e que só eu havia perdido...meu irmão querido e brincalhão.
Nas poucas orações que eu fazia, com a influência do padre, eu sempre agradecia a Deus por ter deixado eu ter um maravilhoso irmão por 12 anos. Nunca reclamei por tê-lo perdido para o rancor mas era grato por ter tido um no passado.
Otávio não me suportava, me expulsou do quarto que dividíamos e passei a dormir no sofá da vovó que me perguntou o por que de ter dormido ali."Oskar, o que faz no meu sofá?"
"Aqui é mais confortável, vovó."
"Seu irmão te bateu?"
"Não, só não consigo dormir lá."Vovó sabia que eu estava mentindo, eu nunca fui bom em mentiras e preferia não fazê-lo mas as vezes eu precisava delas e elas nunca saíram verdadeiras e nunca me ajudavam.
Vovó saiu sem dizer nada mas na próxima noite ela deixou um travesseiro e uma coxa de retalhos, ambos azuis, no sofá.
Ela nunca nos deu presentes então sempre considerei aquilo um grande presente que esteve comigo até o dia que sair de casa.
Quando fiz 15 anos, padre João me deu de presente uma bíblia marron e mesmo não tendo interesse, agradeci. Ele se lembrou do meu aniversário e me deu um presente, coisa que vovó nunca fez por nós. Ela nos dava dinheiro pra lanchar na escola ou em algum passeio escolar e só e, apesar da aparente frieza, vovó nos amava e isso era inegável, nunca gritava com a gente, não tinha muita paciência e acabava por deixar Otávio solto demais mas sempre estava lá com a gente, mesmo em silêncio, nunca saia por muitas horas.
Um dia caí do sofá, já tinha crescido o suficiente para não caber no sofá de dois lugares da vó Elena e decidir ler a Bíblia que ganhara a dois meses e nem tinha sido aberta.28 Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. 29 Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para a vossa alma. 30 Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve.
"Mateus 11." Disse lendo em voz alta. Sempre gostei de ouvir os sermões do padre João mas aquilo, aquilo que tinha acabado de ler me deu uma paz e me fez esquecer que minhas costas doíam, não só naquele dia mas por quase três anos, esqueci que meu irmão me odiava, esqueci que vovó estava perdida sem saber o que fazer ou o que falar, vendo nossa dor e não poder fazer nada, esqueci também que metade da minha família estava morta e a outra estava perdida.
Mais tarde descobri que eu não havia esquecido, eu havia encontrado a paz e aquilo não me doía tanto quanto doeu um dia. Naquele dia, aos 15 anos e dois meses, no chão da sala com uma bíblia marrom e pouquíssima iluminação das 05:17 da manhã que o relógio pendido na parede mostrava, eu troquei meu julgo pesado demais para um menino, com o julgo do Cristo daquele livro e chorei de felicidade, uma felicidade que eu não sabia que podia ter. Mais tarde me senti mal por estar feliz quando meu irmão estava tão infeliz, mas logo que ele começou a trabalhar, perdemos totalmente o contato.
Vovó trocou o sofá por um de três lugares e mesmo que Otávio tivesse saído de casa, continuei no sofá, não só porque tinha me sentido amado por vovó Elena ter trocado de sofá e sabia que era por mim, mas também porque me sentia um intruso naquele quarto. Ele não pertencia a mim, Otávio tinha deixado claro, eu era um estranho para meu próprio irmão e ficar naquele quarto era como se eu tivesse desrespeitando seus sentimentos quase repulsivos por mim.
Aos 16 decidi entrar no seminário e mesmo sendo muito jovem, com insistência consegui que me deixassem entrar e logo em seguida me tornei um diácono da igreja do padre João que apesar dos olhares feios que me lançavam, sempre me apoiou e me ajudou.
Vó Elena estava feliz que um dos netos tinha ido por um bom caminho enquanto o outro mal aparecia nos natais e sempre que aparecia brigava com ela e eu a defendia ouvindo sempre um "por que você gosta de tirar as pessoas de mim?!".
Aos 18 anos entrei pra faculdade de teologia e deixei o posto de diácono para me tornar um futuro missionário, e foi aí que encontrei a verdadeira vocação que eu sabia que tinha. Cuidar das coisa da igreja era bom mas cuidar de pessoas era incrível, saber que podia mudar a vida de alguém, levar paz para pessoas como uma vez eu tinha encontrado no chão da sala, juntar mantimentos e levar a quem precisava, remédios para os enfermos, isso era o que eu tinha nascido para fazer e com a ajuda de Deus, com apenas 20 anos de idade fui consagrado a padre (o que causou tremendo reboliço por quebrar a regra em que só podia ser consagrado a padre com no mínimo 25) e fui enviado para Cuba onde passei meu aniversário de 21 anos num ônibus quebrado na beira de uma estrada deserta e quente. Suspeitava que tivessem me enviado rapidamente para uma missão para evitar conflitos com quem discordava que um jovem fosse padre, ao invés de me manter na igreja ensinando e dando missas.
Se estava bravo? Definitivamente não.
Aquele era meu sonho, ser padre, estar numa missão para ajudar e levar a palavra de Deus para os lugares mais remotos do mundo e poderiam ter dois sóis como parecia ter naquela estrada, que meu sorriso não vacilou num um único momento."Padre Oskar, o senhor está me ouvindo?" O dono da pequena pousada que ofereceu para me abrigar, questionou, enquanto eu estava perdido em pensamentos do meu trajeto de vida até ali.
"Estou sim, meu filho, obrigado." Apesar de ser o triplo da minha idade, me sentia responsável por ele como por todos que cruzavam meu caminho, afinal eu era padre, um pai espiritual de todo mundo. "Foi muito gentil de sua parte me oferecer um quarto, que Deus o abençoe. Não se preocupe com isso, o quarto é mais que perfeito para mim."
Ele sorriu e abriu mais a porta para que eu entrasse e me entregou a mochila que insistiu tirar de minhas costas e uma chave enferrujada. O estreito quarto tinha uma cama de solteiro e uma cadeira servindo de criado mudo. Lembrei do sofá de dois lugares que dormir por anos e sorrir pensando em como Deus me preparara desde muito pequeno para servi-lo em todas as situações.
Tinha abdicado de coisas materiais, não tinha nada de valor e apesar de uma conta bancária farta que dividir com meu irmão até os 18, não pegava nada para mim, o pouco dinheiro que sacava era para ajudar terceiros, mas estava pensando seriamente em comprar um celular simples, apenas para ligar para minha avó e saber de sua saúde.
Ela nunca fumou em nossa presença mas sabia que ela ia para os fundos do quintal a noite pra fumar longe da gente e depois que meu irmão saiu de casa com 18 e eu passei meu tempo entre igreja e estudos, ora seminário ora faculdade, o tempo que ela ficava sozinha ajudou em sua liberdade de fumar com tranquilidade, fazendo sua saúde se deteriorar com o tempo.
Ela não fumava mais, porém era tarde demais para sua saúde e ela sempre teimosa, não me deixava contratar uma enfermeira.
Preocupado e cansado, deitei retirando o colarinho clerical, abrindo os botões da camisa preta social que eu sempre usava com a calça social e sapatos, tudo preto e social, era assim que sempre andava desde que entrei para o seminário. Fiz uma oração breve agradecendo a Deus por ter chegado até ali e pedindo para que em minha primeira missão, desse o meu melhor e pudesse ajudar quantas pessoas Ele me permitisse.
Pedi também para proteger minha avó que agora avançada em idade não deveria estar sozinha.E assim foram ao longo de 10 anos, viajando e levando alento para os que mais precisavam, ficando poucos dias com minha avó e procurando saber, escondido, sobre como estava Otávio.
10 anos vivendo para Deus, deixando o Oskar um pouco de lado e trazendo o melhor do Oskar servo para os outros.
Apesar de várias provações e até necessidades, eu mal sabia que o meu maior desafio estava bem perto da minha própria casa, na igreja onde eu me tornei quem eu era em Santa Esperança, que também era o nome da bela cidade.
Padre João havia falecido a algum tempo mas eu não sabia que a minha amada igreja estava sem um líder espiritual então aceitei ajudar a madre Fátima, a ficar por um mês, tempo em que viria outro padre para ficar em definitivo.
Andando pelo centro, constatei que a cidade tinha ficado bem mais linda do que eu me lembrava, apesar de vir algumas vezes no ano para visitar minha avó, eram visitas rápidas e nunca dava para aproveitar a estadia.
Chegando nos portões de madeira da igreja, bati duas vezes e ouvi um "tô indo" gritado, sorri e aguardei a dona da voz. Sem dúvidas não era madre Fátima, tínhamos conversado duas vezes pessoalmente e uma por telefone e ela era a pessoa mais calma que já havia visto, e olha que eu convivia muito com padres e freiras, e nunca tinha ouvido ela gritar.A porta de madeira se abriu e apesar de estar às portas de uma igreja, não esperava ser recebido por um anjo.
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Padre Nosso
Storie d'amoreOskar tem 30 anos, sendo padre desde os 20, um jovem em meio a tantos padres meia idade e já tendo o respeito de todos eles. Sua fé e bondade atraem o povo da pequena cidade de Santa Esperança, onde foi enviado apenas para ajudar a igreja por 1 mês...