Refém

1.2K 85 5
                                    

Não durou 12 horas em que eu me propus a me distanciar de sabe lá o que era aquilo que eu estava sentindo e que me incomodava e lá estava eu, sentando ao lado dela, que estava vestindo o que parecia ser apenas uma blusa, as 21h da noite.
Se eu fosse qualquer outra pessoa, nada disso importaria, afinal um homem e uma mulher bebendo vinho e conversando sob a lua, nada tinha de errado. Mas eu não era qualquer um, era um homem de Deus e apesar de não ter feito nada que me condenasse, me sentia culpado.

Eu era padre a uma década mas não era bobo, eu via o jeito que ela me olhava, a forma como sua postura mudava quando me encontrava, percebia sua mão colocando uma mecha imaginária de cabelo atrás da orelha e a forma que suas bochechas ficavam rosadas quando eu chegava perto.
Ela era jovem e bonita e eu jamais me aproveitaria do seu encanto por mim para satisfazer algum ego meu. Eu não era apenas padre, era homem e como homem me portaria como tal.

A manhã chegou com uma leve brisa gelada, me fazendo colocar uma camiseta por debaixo da roupa social preta de praxe, com dificuldade coloquei o colar clerical e pegando meu rosário de sempre, fui em direção a igreja.
O dia seria importante pois era minha primeira missa e logo mais teria as arrecadações e a formação do bazar para ajudar a igreja e as irmãs nas reformas.
Conhecia algumas pessoas mas haviam várias que eu precisava conhecer e conseguir sua confiança. Não iria ficar por mais de quatro semanas mas não podia negligenciar pessoas e, afinal, essa cidade era especial pra mim, aqui que eu nasci, cresci, fui feliz com meus pais e Otávio, também tive lembranças ruins e talvez por isso me mantive afastado, mas ainda sim era a minha cidade. Minha família ainda estava aqui e a primeira igreja que me acolheu e eu os acolheria em retribuição.

A igreja de Santa Esperança não era grande, por fora até parecia um chalé de madeira, mas por dentro era espaçoso, com bancos de madeira formando duas fileiras tomando metade da igreja. Na entrada havia um coletor de ofertas de um lado e do outro o confessionário que era uma casinha de madeira dividido em duas partes iguais. Nas paredes haviam anjos descascados mas ainda sim belos, uma pia pequena para batismo jorrava água e mantinha um pano úmido aos pés, a frente o púlpito de acrílico que provavelmente era novo com uma cruz de madeira atrás, na parede.
Acreditávamos em todos os santos, homens honrados e tementes a Deus, mas não fazíamos referências a eles em estátuas pois éramos mais ortodoxos do que romanos. Apesar de ter ido a diversidades de lugares e culturas, minha fé se baseava em como eu havia aprendido, aqui nessa mesma igreja, e mesmo respeitando a todas as crenças, eu era ortodoxo de coração.

Atrás da parede da igreja, havia um quarto onde se guardavam os pertences da igreja e entre eles havia uma batina. A batina era uma vestimenta comprida com 33 botões de alto a baixo, totalmente preta. Tinha usado poucas vezes, preferia minhas vestes sociais escuras, mas num primeiro encontro o uniforme seria preciso.
O vestir, ignorando a corda que seria o cinto da veste que simbolizava a castidade. Não precisava de símbolos, e nesse quesito eu me orgulhava, sempre fui obediente e fiel.

"Bom dia, padre. As irmãs já estão a postos para a canção de início."

"Bom dia, madre Fátima." Olhei e os dois bancos da direita estavam ocupados, duas crianças nos fundos e um senhor ao lado. O lado esquerdo estaria vazio se não fosse uma jovem ereta no primeiro banco, de olhar caramelo como os cabelos soltos e um vestido verde musgo até os joelhos. Maine.
Ela balançava os pés com o tênis branco pra frente e pra trás debaixo do banco.

"Ainda está cedo, padre, daqui a logo mais os demais chegarão."

"Comece as 8 em ponto, madre!" A tranquilizei com um sorriso e fui para trás do púlpito transparente.

20 minutos depois, mais da metade da igreja ainda estava vazia mas seguindo minhas instruções a madre começou regendo o coral das irmãs na hora certa, num ritmo lento e agradável numa letra que nunca tinha ouvido mas que era belíssima. O único instrumento era um teclado tocado por um rapaz que não teria mais que 16 anos. Sorri lembrando de mim mais jovem nesse mesmo ritmo na igreja.
Duas canções depois, todos se sentaram e ignorei o microfone, dando início ao meu sermão.

"Segundo aos Coríntios capítulo 5, verso 17 diz: Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas!
Eu quero dizer hoje sobre novos começos. Por exemplo, para mim, padre Oskar, hoje é um novo começo. Novas oportunidades se dão a mim aqui em Santa Esperança. Todos os dias há novos começos para todos. Deus nos abre um leque do oportunidades e perdão todas as manhãs, e essa é uma delas. Seu filho Cristo Jesus nos deu a maior das segundas chances e nos resgatou. E nos salvou.O que significa ser salvo? Como cristãos, usamos muito essa palavra, mas será que a entendemos? A Bíblia sagrada nos diz: Se você confessar com a sua boca que Jesus é Senhor e crer em seu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo. Pois com o coração se crê para justiça, e com a boca se confessa para salvação.
Um dos grandes benefícios da salvação, é que Deus nos justifica. Um aspecto da justificação significa que Deus nos perdoou de todos os nossos pecados. Ainda mais, Ele também removeu todas as evidências de nosso pecado. Isso é importante, porque todos nós fazemos coisas que não gostaríamos de fazer. Todos nós já dissemos coisas que não gostaríamos de ter dito. Mas Deus perdoará nossos pecados se nos arrependermos deles.
Deus não apenas nos perdoa, mas também se esquece de nossos pecados. E esquecer não é que Ele tenha alzheimer." Com essa frase tirei alguns risos, um em especial, notei com alegria. "Deus se esquecer dos nossos erros quer dizer que Ele segue adiante como se não tivéssemos pecado. A palavra remissão tem uma grande importância aqui!..."

Uma hora mais tarde, depois que acabei o sermão e as irmãs cantaram novamente, fiz uma breve oração e reunir o máximo de dinheiro possível para o reforma. Me surpreendi com a disponibilidade das pessoas em ajudar e já iniciamos os preparativos para o bazar que faríamos no decorrer dessa semana.

Fui para as grossas portas de madeira da igreja, me despedindo e agradecendo a cada um. As poucas irmãs que ficaram para me ajudar no final também já haviam ido para o convento.
Fechei as portas da igreja eram exatamente 10:45h, aliviado pela manhã não ter sido tão difícil quanto imaginei. As vezes as pessoas ficavam inflexíveis com um novo padre, ainda mais com um tão jovem. Sorri por constar o quanto as pessoas ainda surpreendem positivamente, mas meu sorriso morreu quando sentir, ainda de costas, uma corrente invisível me puxar para trás, onde uma Maine sorridente me avaliava com admiração em frente ao altar.

Deus sabe o quanto me dedicava com afinco em ser um homem livre de grilhões mas, naquele momento, eu era um refém.
Um refém de sua beleza.

Aquilo era no mínimo um incomodo, disse pra mim mesmo, e iria acabar antes de começar!

"Deseja algo, filha?"

Sua sorriso foi substituído por um vinco na testa.

É exatamente o que está pensando, Maine! Sem chances!

"Nã-não, eu..." Passando as mãos pelo vestido, ela parecia nervosa. "Eu queria dizer que o que disse...tudo que disse, foi... perfeito! Eu..."

"Foi só um sermão simples, Maine. Apenas introdução."

"Não. Eu nunca consegui ficar acordada numa igreja e muito menos tão cedo. E você...o senhor, foi...tudo foi lindo!" Ela mordeu os lábios e parece que constatou com certa decepção antes de continuar. "O senhor realmente nasceu pra isso."

"Isso me pareceu uma pergunta."

"Então responda!" Por um momento ela me pegou de surpresa e, um pouco sem graça, se virou para ir embora.
Antes, porém, deveria acabar com todas as esperanças de uma vez.

"Sim! Nasci pra isso."

E ela se foi.

Padre NossoOnde histórias criam vida. Descubra agora