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Eu voltei pra casa do meu avô pensando nas bilhões de possibilidades que poderiam fazer com que eu e minha mãe voltássemos a ser próximos.

Minha mãe sempre gostou de estar no comando, de me fazer obedecer as regras dela, lembro que quando sai da escola, ela me obrigou a me matricular no curso de contabilidade e depois me obrigou a ficar nele ate o fim, lembro de ela me obrigar a usar roupas especificas e a ser de determinado jeito.

Minha mãe me moldou para ser a filha perfeita e impecável, tentou controlar cada mísero detalhe para que eu não saísse do controle dela.

E de repente, ela descobriu que eu não era uma menina, e todos os planos que ela construiu para mim foram sendo destruidos um por um, todas as expectativas foram retiradas dela no mais absoluto vácuo existencial, e desde então eu deixei de ser a princesa dos contos de fadas, para me tornar um monstro destruidor de lar.

A memória viva dentro de mim do momento em que tudo virou de cabeça pra baixo me incomoda, se pudesse, eu gostaria de esquecê-la.

○●○

Marina estava terminando de passar a faixa no meu corpo, eu me olhava no espelho, finalmente conseguia enxergar algo diferente do corpo horrendo em que nasci, prendi meu cabelo me virando de lado.

—Martin? Eu gosto sabia?— Marina sorriu me olhando pelo espelho.— É forte.— Ela beijou minha nuca.— Se pudesse... mudaria seu nome no cartório?— Concordei ainda me admirando, eu estava me sentindo eu? Pela primeira vez em vinte e um anos de vida, eu finalmente me enxergava.

—Martina.— Minha mãe entrou no quarto, me encarou, ficou em silêncio por um tempo, o rosto mostrando uma expressão de nojo.— O que você está fazendo?— Abaixei minha cabeça, contar a verdade para mamãe seria um desastre, respirei fundo.

—Mãe... eu...— Olhei nos olhos dela, eu devo me impor, é isso, eu devo ser real, dizer o que sinto.— Eu sou um homem.

Os tapas que recebi depois disso me fizeram entender exatamente o que eu deveria saber desde o começo.

Eu não sou digno de viver essa vida.

Essa vida não me cabe.

Eu não posso ser um homem.

Eu preciso agradar a minha mãe.

○●○

Acordei com a respiração ofegante, senti mãos me tocando, olhei pro lado vendo Félix, ele me encarava assustado, me agarrei nele, tentava puxar ar mesmo sendo impossível.

‐—O que aconteceu?— A voz dele saiu baixinha, senti lágrimas escorrendo pelo meu rosto, meu peito doía, senti minha alma se moendo em pedacinhos, minhas entranhas se contorcendo.— Martin...— Ele passou a mão no meu rosto.

—Eu...— Fechei meus olhos, abracei ele, não conseguia dizer nada, acho que Félix me entendeu, não soltou o abraço em nenhum momento, me deixou ficar ali, me deixou senti-lo em silêncio, sem questionar, sem brigar.

—Foi pesadelo?— Concordei, Félix me ajudou a deitar, ficou fazendo carinho em mim até eu pegar no sono.

Acho que escolhi a pessoa certa.

Acordei com um barulho chato, me virei no sofá procurando por Félix, não o encontrei, me levantei, andei pela casa em silêncio até acha-lo na cozinha com meu avô.

—Oi meu bem.— Ele me encarou, sorriu colocando uma mexa do cabelo para trás. — Como foi sua noite?

—A gente pode ir embora?— Perguntei de cabeça baixa, eu não aguento mais ficar nesse lugar, com a minha mãe, eu quero ir embora daqui.— Félix eu não aguento mais.— Meu avô se aproximou, me fez sentar na mesa, encarei ele.

—Martin, precisamos conversar. — Fechei meus olhos, escutá-lo falar me acalmava, mas me desesperava tambem, Felix saiu da cozinha, meu avô me encarou.— O que está acontecendo com você? Está agitado e Félix me contou que teve ate pesadelo.

—É a minha mãe vô, ela fica atormentando os meus pensamentos, parece que eu vou explodir... eu achei que tinha lidado bem com a rejeição dela, mas agora? Agora eu estou perdido.

—Martin, você sabia que todos os dias a sua mãe vem aqui e pergunta de você?— Meu avô suspirou pegando a minha mão. — Eu sei que é triste vê-la te tratando como nada, te dizendo coisas horríveis... mas meu filho, você demorou vinte anos para se entender e se aceitar, é necessário dar tempo a sua mãe.

—E quanto tempo eu vou dar vô?— Perguntei apertando a mão dele, eu quero respostas concretas, eu quero que ela me olhe e diga que me ama.— Quanto eu estiver em um caixão será o suficiente?

—Não diga isso Martin.— Ele apoiou a mão no meu rosto.— A sua mãe te ama, e eu sei que não parece, mas sua mãe me puxou sabia? Antes de você nascer eu era muito cabeça dura, eu achava que tudo tinha que ser como eu tinha planejado, e sua mãe tinha que seguir as minhas ordens sem questionar.— Olhei me avô, eu não sabia disso.— Sua mãe sofreu muito em minhas mãos, ela se tornou professora por que eu a obriguei... Martin, não julgue a sua mãe, por mais difícil que seja, ela está de alguma maneira tentando se resolver antes, está tentando juntar os próprios estilhaços, sei que é difícil aceitar que alguém não te enxerga como você gostaria, mas pare de buscar pela aprovação dela Martin, passe a aproveitar o que ainda resta.

Meu avô se levantou, beijou minha cabeça, saiu como se tivesse me dito para comprar pão na padaria,  fiquei em silêncio repassando várias e várias vezes o que ele me disse, sempre fomos muito próximos, e meu avô sempre me tratou bem... como foi que...

Várias situações começaram a surgir em minha cabeça, as vezes em que meu avô tentou e conseguiu controlar a minha mãe, quantas vezes ele colocou ponto finais em lugares que deveriam ser vírgulas na história dela? Ontem mesmo, quando estávamos conversando sobre profissão,  eu não tinha reparado na forma como ele havia falado com ela.

—Martin. — Escutei Félix, me virei o encarando.— as coisas já estão no carro.— Me levantei, peguei na mão dele o puxando para fora, Lucas estava deitado no banco de trás do carro.

Me despedi do meu avô, agradeci a ele por tudo.

Dirigi até encontrar o muro azul, Felix me encarou mas ficou em silêncio, desci do carro sozinho.

Abri o portaozinho e bati palmas, alguns segundos depois aquele cabelo ruivo abriu a porta, ela me encarou em silêncio.

A abracei, era tudo o que eu precisava, era o único remédio que poderia curar minhas feridas, fiquei em silêncio abraçado nela, me senti criança de novo quando eu tinha medo de dormir sozinho no meu quarto.

—O que aconteceu?— Ela perguntou baixinho.

—Eu descobri que te amo.— Minha voz saiu tão baixa quanto a dela, ficamos ambos em silêncio, me soltei do abraço, olhei em seus olho.— Isso não é um adeus.— Me virei de costas, sai indo direto para o carro.

—Martin.— a minha mão que segurava a maçaneta ficou intacta, me virei a encarando.— Eu também amo você. — Sorri, isso era o bastante.

Entrei no carro, dirigi durante três horas como se fossem três minutos, meu coração estava confortável e isso era o suficiente.

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Autor: Eu achei tão fofo esses dois 🥹🤏

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Martin, não seja burroOnde histórias criam vida. Descubra agora