19. Queda livre (Por Isabela).

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            Quando eu tinha cinco anos de idade, eu odiava o inverno. Odiava o frio, a chuva, o céu fechado e, principalmente, os relâmpagos e trovões. Como nossos pais saíam para trabalhar, Renato e eu ficávamos sozinhos em casa e nos escondíamos nos armários e guarda-roupas até que um dos dois chegasse. Ficávamos inventando histórias sobre reinos distantes e universos fantásticos até que o carro buzinasse como um sinal para que um de nós fosse abrir o portão da garagem.

Houve um dia, desses dos mais frios, que eu estava com muita dor de cabeça e uma febre alta. Renato não sabia ler as bulas dos remédios e mamãe tinha uma regra muito severa sobre crianças manuseando medicamentos. Precisei ficar a tarde inteira com dor e não quis ligar para ela, não quis preocupa-la. Estava tão fraca que adormeci ali mesmo, dentro do guarda-roupa do meu quarto. Foi Renato quem abriu o portão da garagem dessa vez e eu nem ouvi a buzina tocar. Quando abri os olhos, estava na minha cama, quentinha, e a dor havia diminuído. Ao meu lado, no criado-mudo, um termômetro e um bilhete que trazia em letras arredondadas: "Melhore logo, docinho".

Por mais que aquilo me motivasse, eu continuei doente por mais três dias. Mamãe não foi trabalhar em nenhum deles. Ligou para sua amiga e pediu que avisasse que eu estava doente e precisava de toda atenção possível, caso algo mais grave acontecesse. Ela me dava uma dose de remédio após o café da manhã e aproveitava o tempo em casa para dar uma ordem nas coisas. Mais tarde, trazia uma fruta ou um suco de fruta acompanhado de pão e granola. Dizia que o segredo de uma rápida recuperação era uma boa alimentação. O mesmo fazia com o almoço, o lanche da tarde e o jantar. Não extrapolava um minuto sequer e lá estava ela, com uma bandejinha em mãos. Media minha temperatura, arrumava meu edredom e me dava um beijo no topo da cabeça.

Por mais que eu estivesse bem doente, eu me lembro desse tempo com muito carinho porque é a melhor memória que tenho de minha mãe. Eu estava tão feliz por tê-la comigo que sequer reparei que estava relampeando lá fora. Que o tempo estava muito frio e que os trovões estavam assustando Renato. Minha mãe estava ali, por que eu deveria me preocupar? Eu sabia que, enquanto a tivesse ao meu lado, não havia tempestade que eu não pudesse suportar. Não havia nada que pudesse me abalar contanto que eu tivesse minha mãe comigo.

Já haviam se passado duas semanas desde o dia do vestibular. O resultado ainda não havia sido liberado, o que significava que o nervosismo ainda continuava lá. Claro que os ânimos e o medo haviam diminuído um pouco, mas enquanto não soubéssemos nossas notas e tivéssemos a certeza de que iríamos ingressar na faculdade, a ansiedade continuaria nos acompanhando.

Num desses domingos ensolarados, perfeito para sair com as amigas, Carolina e eu decidimos ir à um clube. Uma colega da nossa turma, Juliana Medeiros, estava completando dezoito anos e nos convidou para uma comemoração que faria com uns conhecidos nossos. De uns dias pra cá, eu havia adotado uma nova filosofia de vida: o menor número possível de dias dentro de casa. Em breve eu começaria uma nova rotina, com faculdade e tudo mais, então eu precisava aproveitar esse restinho de tempo que eu tinha de vida social.

Eu havia conversado com Otávio mais cedo. Desde a formatura, voltamos a nos falar diariamente. O relacionamento com Bruna estava acabado, por mais que ela aparentasse estar bem. Tinha dirigido duas ou três palavras pra mim quando nos cruzamos pela rua e estava sorridente. Fazia muito tempo que eu não julgava felicidade de ninguém por sorrisos – eu era prova viva de que isso não confirmava felicidade – mas eu torcia pra que fosse verdade, pra que ela estivesse feliz. Era inútil não me sentir culpada, já que eu realmente era, mas era mais reconfortante saber que ela não estava sofrendo com tudo aquilo.

Quando Carol passou para me buscar era cerca de dez horas da manhã. Não passei muito tempo me preparando, escolhi a primeira regatinha que encontrei e combinei com um short jeans. Agora que eu tinha um cabelo curto, me preocupar em passar horas arrumando-o já não era mais uma prioridade pra mim. Só dar uma chacoalhada e pronto. Estava pronta.

Eu, você e o tempo entre nósOnde histórias criam vida. Descubra agora