Afastou alguns fios da face adormecida, usando o dorso de dois dedos para tocar levemente a testa delicada. A febre que a atingira durante as primeiras horas da noite já não estava mais ali, as bochechas ainda rubras eram agora os únicos resquícios de seu estado antes delirante.
Estava adoecendo, constatou o óbvio.
Não era de se estranhar que toda essa situação estivesse sugando a vitalidade da moça. Sakura não pertencia àquele mundo, não fazia parte da sua natureza. Cresceu isolada da maldade, e agora o corpo frágil inconscientemente repelia as atrocidades que fora submetida por consequências de atos seus.
O sensação de sentir-se um monstro não era algo novo para si, estava sempre ali, fazendo-o companhia. E como negar? Não era como se não fosse verdade. Uma verdade intrínseca a si mesmo, com a qual já tornou-se indiferente. Acostumou-se. Teve de fazê-lo, em algum momento. Tornou-se apenas natural. Apenas mais uma dentre as tantas facetas que foram costuradas juntas de sua própria essência.
Estava dentro de seu ser e por toda a parte. Um peso que era sentido em seus ombros desde as primeiras memórias. Recordava-se com dissabor como o seu próprio eu de figura franzina costumava achá-lo tão pesado. Doloroso. Como era possível sentir-se leve uma vez que seus ombros ainda permaneciam em carne viva?
Poderia quase vê-los ao despir-se diante o espelho, sangrando em um escarlate vivo. Vivo? Não. Talvez por isso não sentia mais o peso de suas ações ou da monstruosidade que se tornou.
O peso não ficou mais leve com o passar dos anos, muitos menos tornou-se imune à dor como gostava de pensar. Tudo ainda estava ali, o sangue escorrendo pelos braços pálidos era a prova disso. Contudo, não doía. Por que não doía? Por que parou de doer? Quando parou?
Talvez já estivesse morto. Sim, com certeza estava morto. Em algum momento teve que matar sua própria alma e não foi difícil, foi simples, até. Mas ele não se lembra como o fez ou em que momento, ou talvez ele apenas não goste de lembrar. Provavelmente era isso, sua mente costumava brincar e esconder coisas que não lhe eram muito agradáveis, estava acostumado.
Ele era bom em se acostumar, o fazia com frequência. O fez por muito tempo. Acostumar-se ao sangue, aos gritos, ao cheiro de pólvora, ao odor de cadáveres em putrefação.
Talvez tenha levado algum tempo mas, eventualmente, acostumou-se. Sempre se acostumava. Tornaram-se coisas corriqueiras e naturais.
Poderia se afogar em sangue sem ao menos piscar os olhos, que fosse o seu próprio ou o de outro alguém, não fazia a mínima diferença. Não esboçaria quaisquer sentimento, pois já era de seu conhecimento que não mais os possuía. O seu corpo era oco, sua alma flagelada e vendida ao diabo. A almejada salvação não era reservada para pessoas como ele, assim como sabia que não era merecedor de tal misericórdia, a quem queria enganar? A ele restava somente a casca de um homem entorpecido, escravo dos próprios pecados. Não merecia nada, portanto, nada possuía e nada lhe era devido.
Quão doloroso poderia ser o fogo do inferno? Seria ele capaz de senti-lo? Finalmente sentiria alguma coisa? Oh, de tal perspectiva não lhe soava tão ruim. Não que realmente lhe importasse, descobriria em breve de toda a forma, pois será lá onde passará sua miserável eternidade, como o miserável que era.
Apenas mais um pecador pagando pelos próprios pecados, somente mais um dentre tantos outros. Contudo, talvez o fogo que fosse lhe cozinhar a alma seja um pouco mais ardente. Não, não talvez, ele seria definitivamente mais ardente.
Os olhos ônix ainda se encontravam cravejados na figura feminina quando os dois dedos deslizaram pelo contorno do rosto adormecido, retendo o movimento ao encontrar a calidez da bochecha rosada. Era suave e de toque agradável, parecia seda, macia e aveludada contra a aspereza de seu próprio tato.
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Epiphany
FanfictionSakura, que fora criada a vida inteira em uma redoma de vidro, é sequestrada por Uchiha Sasuke. Intrigas, segredos, acordos, horrores do crime e uma inocente. A história conta a epifania de Sakura, onde descobrirá as verdades sobre si mesma, seu pa...