Era terça feira, não passava das oito da manhã quando ouvi minha mãe aos berros. Fui mancando até a sala onde meu pai estava sentado de cabeça baixa.
Por um segundo não entendi o motivos de ambos estarem chorando. Mas ver o telefone fora do gancho foi o suficiente para me fazer perceber que algo tinha acontecido com Sarah.
Peguei o telefone que ainda estava pendurado.
-- Alô? Disse com a voz tremula.
A linha estava muda.
Encarei minha mãe que veio me abraçar.
-- Ela morreu Fernanda. Sua irmã morreu.
Senti meus joelhos cederem, caí no chão junto com minha mãe que ainda me abraçava. Senti um formigamento estranho percorrer todo o meu corpo, aquilo parecia tão irreal. Um vazio tomou conta de todo o espaço a minha volta.
Minha mãe gritava em meu ouvido que aquilo não podia estar acontecendo, meu pai ainda no sofá estava em prantos. Quis me levantar e ir para o meu quarto e me deitar em minha cama, tinha certeza que aquilo não passava de um grande engano. Quando acordasse Sarah estaria na cama ao lado dormindo, e eu finalmente ia sentir o alivio de ter acordado daquele pesadelo.
Minha mãe me abraçava com tanta força que chegava a doer, mas eu não me importava. Eu só queria sair dali e respirar um pouco de ar fresco para poder clarear a mente.
-- Cris. - meu pai veio até minha mãe e a pegou pelo braço ajudando-a a ficar de pé. - Nós precisamos ir até o hospital. - disse.
Ele não olhou para mim quando passou ao meu lado. Ainda estava no chão, chorando como uma criança esperando ser confortada por alguém. Mas já não havia ninguém ali.
Ouvi o barulho do carro saindo da garagem e o portão ser fechado, enquanto criava forças para me levantar.
Me apoiei no sofá e fui até meu quarto mancando. Peguei meu celular e enfiei no bolso da blusa que tinha acabado de vestir e saí de casa. Não sabia para onde iria. Mas não podia ficar ali. Não conseguia olhar para os moveis e lembrar de Sarah. Não consegui ficar em meu quarto olhando para a cama vazia ao lado da minha.
***
Estava escuro, e eu não fazia ideia de onde estava. Peguei um ônibus e desci em um ponto qualquer mais cedo, e depois fiquei vagando sem rumo pelas ruas até achar uma praça. Fiquei sentada ali por horas encarando o nada.
Meu celular tocou algumas vezes, mas não tive vontade de atender.
Minha mente estava preocupada com outra coisa. Tinha que resolver o que iria fazer agora que sabia que estava gravida. Meus pais me matariam se soubesse. E eu estaria fazendo um favor para aquela criança impedindo que ela nascesse em uma família tão desestruturada. Ela não teria um futuro. Eu não poderia lhe dar as coisas que ela precisasse. Eu nem tinha um emprego para poder sustenta-la.
Senti a raiva me dominar e por um instante quis tirar com as próprias mãos aquela coisa de dentro de mim. Não estava pronta para ser mãe, não estava pronta para ter esse tipo de responsabilidade. Não sabia lavar minhas roupas sozinhas sem manchar a maioria das peças brancas. Não seria capaz de cuidar de outra vida. Ainda mais sabendo que estaria totalmente sozinha.
Eu não queria que minha vida acabasse dessa forma, comigo gravida sem ter algo a oferecer para a criança.
Meu telefone tocou mais uma vez e dessa vez eu atendi. Era Claudia. Eu não queria conversar. Mas lhe contei que Sarah havia falecido e depois desliguei o celular.
Precisava ir para a casa. Queria resolver de vez o que faria com a criança dentro de mim.
Perguntei para uma mulher que brincava com seu filho no balanço da praça como fazia para pegar um ônibus que me levasse até em casa, e depois de uma breve explicação eu agradeci.
Me sentia tão cansada quando cheguei em casa. Minha perna doía um pouco assim como minha cabeça.
Me sentei de frente para o computador e o esperei ligar depois que já estava em meu quarto. Tentei ignorar o fato dele continuar vazio e me concentrei no que estava fazendo.
Abri a janela do Google e digitei as palavras apertando o enter. Milhares de resultados apareceram em questão de segundos.
Cliquei no primeiro link que dizia ser uma clinica de aborto.
Tive que fazer cadastro no site para poder ver os documentos que seriam necessários. RG e CPF apenas. Dei mais uma olhada no site e então peguei meu celular e liguei para o numero indicado na pagina para conseguir agendar um horário.
-- Clinica especializada, boa noite. - disse a atendente do outro lado da linha.
-- Alô, boa noite. - Disse sentindo minhas mãos soarem frio. - Eu gostaria de marcar um horário.
Passei meus dados para a mulher do outro lado da linha que disse ter um horário disponível apenas dali a 15 dias. Anotei o endereço da clinica que ela me passou e então desliguei. Não queria prolongar ainda mais isso tudo.
***
Não consegui dormir aquela noite. Fiquei acordada olhando para a cama vazia de Sarah a maior parte dela. O enterro seria as 16hrs do dia seguinte. Meu pai cuidou de praticamente todos os detalhes, deixou apenas a escolha das roupas para a minha mãe. Eu não quis ajudar, não queria ter que escolher uma peça de roupa que ela gostava e ver que aquela seria a ultima vez que a via usando-a. A única coisa que fiz foi dizer para minha mãe que deveriam fazer uma trança em seu cabelo, era como ela gostava.
Meus pais não queriam que a cerimonia fosse algo grande, queriam somente a família ali, mas achei totalmente injusto com todas as pessoas que fizeram parte da vida de Sarah. Tinha certeza que ela ia querer ter a despedida de seus amigos também.
Claudia também foi ao enterro. Estava acompanhada da mãe, ela parecia melhor.
-- Meus pêsames Fernanda. - Dona Ana veio me abraçar.
-- Obrigada. - disse, embora não soubesse se devia agradecer pela tristeza de alguém.
-- Como você está? Claudia também me abraçou.
-- Estou bem. - menti.
-- Você não parece nada bem. - disse dando um suspiro. - E a perna? Perguntou observando a muleta que me apoiava.
-- Está melhor, espero poder tirar os pontos logo. - disse sem emoção na voz.
Ela sorriu para mim, e me abraçou carinhosamente.
-- Se quiser conversar, eu vou estar bem aqui. - disse.
Eu não estava muito a fim de conversar, e ela pareceu perceber aquilo e ficou em silencio por um bom tempo.
Não voltei para minha casa depois do enterro. Minha cabeça parecia que ia explodir na maior parte do tempo. Nada mais fazia sentido para mim.
Andei pelas ruas de São Paulo, sem rumo, e sem vontade nenhuma de voltar para casa. Comprei um lanche para comer em uma lanchonete de esquina, mas meu estomago estava agitado de mais para conseguir digerir alguma coisa.
Resolvi dar uma volta pelo Parque do Carmo antes que ele fechasse, para ver se conseguia clarear as ideias. O dia não estava muito quente, mas mesmo assim resolvi me deitar de baixo da sombra de uma arvore. Depois de alguns minutos ali vendo as poucas crianças brincarem nos escorregas e nos balanços, pensei que poderia ter levado o livro que Claudia havia me dado para ler um pouco. Mas minha cabeça estava tão cheia que, ler um livro, seria a ultima coisa que eu iria conseguir fazer.
Meu celular tocou. Olhei na tela para ver quem era. Era minha mãe. Apertei o botão vermelho para ignorar a chamada. Não estava com cabeça para falar com ninguém.
Fechei os olhos e deixei que a brisa fresca me libertasse de toda aquela energia ruim. Sarah estava em um lugar melhor agora, e era isso que importava para mim.
"Descanse em paz irmãzinha" pensei.
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Um fio de esperança. {EM REVISÃO.}
No FicciónA primeira vez que ouvi falar em anorexia, não tinha mais do que 12 anos. E naquela época eu não conseguia entender como uma pessoa podia ter nojo da comida. Não sabia nada sobre o assunto. Até descobrir que Claudia estava indo por esse caminho tão...