Todo o meu ser observa o sol a pôr-se lentamente no horizonte rasgado pelo mar azul que começa a turvar pela falta de luz no céu. A janela deste quarto demasiado grande tem uma vista que acharia lindíssima noutras condições, mas que agora faz a divisão parecer imensa, vazia, fria e solitária. Continuo encolhida na cama de um hospital, envolta no cheiro de medicamentos, marcada de lágrimas salgadas e feridas internas jamais curáveis. Sinto que o meu corpo não tem água suficiente para aquela que quero chorar, e para a que vou precisar para o resto da minha vida. Pensei que não era possível suportar mais qualquer tipo de dor, que seria imune a tudo o que mais viesse. Fui ingénua.
A minha pele está fria assim como, o que chamaria de coração há uns meses atrás, não passa de um espelho completamente estilhado e sem reparo possível. Não consigo viver esta vida que insiste em derrubar-me cada vez que me tento erguer. É impossível ter esperança quando vejo todas as minhas crenças a serem destruídas aos poucos, e o pior de tudo, é que não há nada que possa fazer para me impedir a mim mesma de morrer um pouco mais a cada dia tortuoso que passa nesta terra que gira, tão devagar.
A porta do quarto gelado é aberta pela primeira vez neste dia deixando uma corrente de ar arrepiar-me. Ele observa-me uns segundos antes de avançar em passos curtos e distantes de mim, parece que tem medo de se aproximar mais. Os cachos que costumavam ser bem tratados e bonitos estão agora secos e arrepelados de tantos puxões e toques nervosos, assim como os lábios gretados que ele insiste em apertar entre o polegar e o indicador. Dois grandes círculos roxos estão destacados debaixo dos seus olhos que eram brilhantes e frios, mas agora não passam de duas íris verdes sem alma nem vida, iguais a tantas as outras no mundo.
Harry senta-se numa cadeira feia e gasta, que está encostada à parede amarela, que outrora era branca, mas a sua tintura ficou degradada com o tempo. Encosta-se ereto e cruza os braços contra o peito grande e forte que o faz parecer maior do que na realidade é. Ele enverga uma t-shirt preta, assim como uns jeans e umas botas da mesma cor. Parece até que veio presenciar um funeral, mas não. Veio apenas ao hospital visitar alguém insignificante no mundo. Mira-me com os lábios em repouso um no outro e encara-me profundamente, algo que acharia intimidante há dois meses, mas agora é-me completamente alheio. Cansada da nossa troca de olhares que não nos vai levar a lado algum, volto a observar a luz no horizonte, que é praticamente nula pois, toda a paisagem já está envolvida na escuridão da noite que veio, especialmente hoje, depressa de mais.
"Como estás hoje?" É tudo o que ele diz. 'Como estás hoje?'. Como estou hoje? A verdade é que não sei, não faço a menor ideia do que sinto hoje. Talvez algo entre uma enorme vontade de me afogar ou de me perder no deserto.
"Melhor." Minto. Mentir é algo em que sou boa. Minto para me proteger do que não sou capaz de ouvir, prefiro fingir que está tudo bem do que desatar aos berros quando não quero discutir.
"Dormiste algo esta noite?" Não dormi, mas não o vou dizer. Há dias que não sou capaz de dormir, nem sequer fechar os olhos para tentar descansar uns míseros minutos. Queria e devia sentir-me exausta com toda a medicação que me dão para que não pense direito, mas não consigo. Apenas me consigo concentrar naquilo que poderia ter acontecido se eu tivesse realmente descoberto que estava grávida antes. Tudo se tornou num mistério do dia para a noite. Às vezes pergunto-me se estou realmente viva ou não passa de uma memória de um corpo morto, já sem vida. Mas aí sinto dor dentro de mim, vejo flashbacks constantes de tudo o que se passou e recordo cada frase dita e segundo passado e aí, lembro-me de que estou viva, que infelizmente continuo viva.
"Um pouco." A minha voz fraca é quase inaudível neste espaço. A ala da psiquiatria é muito silenciosa a esta hora, não há gritos nem passos antecipados de enfermeiras que se apressam para pacientes que precisam de auxílio urgente. Depois de três dias entre exames e salas de operações, fui transferida para a ala psiquiátrica do hospital, por que aparentemente, o médico achou que precisaria de apoio emocional nesta fase complicada em que deixei de falar com o mundo e me fechei completamente. Depois de dias transferiram-me para Londres novamente e aqui continuo. Falo apenas com ele. Ele é o único com quem consigo falar sem ficar com súbita raiva do mundo. Esta semana foi muito complicada para a nossa relação, vi a chama do nosso amor apagar-se lentamente quando percebi que ele estava cada vez mais distante de mim. Talvez fosse eu quem estava distante, talvez eu tivesse criado uma barreira à minha volta e não tenha deixado ninguém saber o que sinto.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Valentina
RomanceUma relação proibida numa sociedade pragmática. Uma luta eterna pelo amor.