O céu está nublado, tapado de nuvens cinzentas, está prestes a chover. Uma brisa fria trespassa qualquer corpo desprotegido que se atreva a sair à rua, neste dia gelado e invernoso do rigoroso mês de Janeiro. As folhas das árvores despidas dançam no ar, uma dança desconhecida para muitos, mas adorável para aqueles que a sabem apreciar verdadeiramente. Um carro clássico e vermelho está estacionado no lado oposto ao do edifício, sujo e vedado que parece deserto visto de fora. Somente parece.
Os seus dedos batem calma e ritmicamente no volante, a ansia é palpável no ar. A sua cabeça está encostada para trás, no banco negro emacio. Ela sabe que precisa de o fazer, precisa de tentar de novo mesmo que o receio e incerteza a consumam lentamente, como a chama queima a lenha, ela precisa de o fazer para conseguir acordar leve e com um sorriso nos lábios novamente. O seu telemóvel está desligado, não quer ser interrompida com trabalho hoje. O corpo está frio, embora o ambiente do carro esteja quente e acolhedor, ela desenvolveu um estado constante de frieza que parece estar a ser extinto com o passar do tempo. Apesar da camisola de lã quente que enverga, nada parece aquecer o seu pequeno grande coração eternamente cicatrizado.
Fecha os olhos deixando as longas e bonitas pestanas tocarem no topo das bochechas pálidas, algo que, apesar do tempo, nunca mudou. Ela continua a mesma que sempre foi, está apenas escondida no disfarce de rapariga forte e valente. A verdade é que ela o é. É forte, destemida e já passou por muito, mas talvez queira quebrar nos braços de alguém de vez em quando. A sua vinda a Londres apenas a fez recordar tudo o que lhe aconteceu, e a quão dolorosa pode a vida ser, com alguém que não merece mal algum.
A porta do lugar do pendura é aberta deixando o frio avassalador entrar por segundos e um suspiro abafado sair da sua bonita boca pintada de vermelho. Apesar da presença de alguém no carro, ela não se atreve a abrir os olhos, não é capaz de o encarar naquele momento. Sente a figura ao seu lado e o frio que o seu corpo emite, mas não se move um centímetro. Respirações pesadas e o som do vento são a única coisa ouvida naquele momento melancólico e tenso. Quando o saco é atirado para a parte de trás do carro, ela arranca sem saber exatamente para onde ou porquê. Apenas quer sair dali rapidamente com ele.
O silêncio reina, ninguém se atreve a dizer uma sequer palavra com medo de destruir a beleza daquele silêncio calmo e pacífico que os envolve docemente. A mulher limita-se a conduzir, ainda sem o olhar, tem medo do que possa passar-lhe pela cabeça. Depois de minutos calados, o carro abranda e para perto de uma ribanceira para o mar, junto da estrada desertificada onde aquele carro vermelho é o único a circular. Ela abre o seu vidro e deixa o som do vento e da água cortarem o silêncio dominador. Não sendo capaz de digerir aquele momento, ela abre a porta e sai batendo-a com força. Coloca-se na parte da frente do carro e observa a paisagem daquele local. O seu cabelo voa numa dança suave, o seu corpo, que estava outrora gelado, está agora quente e nervoso.
"Obrigado." Ele diz baixo quando se coloca ao seu lado, sem saber exatamente como se expressar, ambos têm dificuldades em comunicar ao fim de tanto tempo separados. "Sem ti, teria sido morto na prisão."
"Jamais te iria deixar morrer ali." O tom da conversa é baixo e calmo, enquadra-se no ambiente que os envolve. Harry encara-a com luxuria e paixão, está perdidamente apaixonado, mas sabe que ela está magoada depois de tudo. Valentina ainda não se vê com coragem para mirar os seus olhos verdes em que se perdera centenas de vezes envolta no seu amor. "Já tinha saudades de Londres." Admite.
"E eu tuas." Ela não quer sentir-se afetada, mas parece impossível resistir aquele homem que tem um grande poder sobre ela. "Não mintas a ti mesma. Sei que também tinhas saudades minhas."
"Não vou admiti-lo." Fala.
"Valentina," Suspira. "Acho que devíamos conversar sobre o que aconteceu há sete anos." Ele quer esclarecer o passado para se sentir aliviado, mas ela só quer esquecer e seguir em frente.
"Não." Nega. "Não quero falar novamente sobre isso. Quero afogar essas memórias aqui e agora. Para sempre." Diz. Pela primeira vez olha-o e quando o faz, um brilho forma-se nos olhos de Harry. Um brilho apaixonante e doce que a faz perder-se pela milésima vez desde que o viu.
"Eu quero-te." Harry admite despido de medos e receios. Ela sorri deixando um som nasal sair e os olhos dele sorriem esperançosos.
"Lembras-te de quanto de disse que nunca seria feliz?" Pergunta. "Estava certa. Eu nunca serei feliz. Ninguém é feliz constantemente. Há momentos melhores do que outros e, devo dizer, que os meus foram maioritariamente maus." Ele ouve atentamente o seu desabafo, quer mais do que tudo compreender o que lhe vai na cabeça. "Mas agora estou bem. Ou pelo menos pensei que estava, até te ver." O seu sorriso cai por uma fração de segundo. "Tu despertas-te sentimentos em mim que não sentia há muito tempo. Misturas-me as ideias e pões-me confusa como o inferno." Ele olha para o mar procurando as palavras certas para o dizer, quer expressar-se de outra forma, mas não consegue encontrar naquela liberdade qualquer suporte.
"Mas eu amo-te." Sussurra e o vento deixa as palavras no ar, um perfume suave e aromático.
"Amo-te mais do que pensei ainda amar. Estás aqui. Bem ao meu lado. Não pensei que quanto de visse ia estar ainda não apaixonada como da última vez em que estivemos juntos. Mas a verdade é que estou." Conclui Harry perdido na beleza de Valentina que continua perdida na paisagem. "Sei que posso não ser o homem mais adequado para ti, depois de tanto tempo, mas amo-te. E não vou, nunca mais, lutar contra isso."
Valentina estuda cuidadosamente o rosto daquele bonito homem que nunca perdeu o charme ou o mistério, continua ele próprio, apenas um pouco mais velho. Ela vê-se a rir como da primeira vez que passearam juntos na praia, Harry rasga um sorriso enorme nos lábios e sente-se no topo do mundo ao lado daquela linda e determinada mulher.
Ninguém pensou voltar a vê-los assim. Juntos. O amor deles revelou-se imortal e incondicional apesar de tudo o que sofreu com o passar do degradante tempo.
Quando o corpo de Harry se aproxima para segurar o rosto delicado de Valentina, nunca os olhos de ambos estiveram tão felizes. Os lábios deles tocam-se levemente apreciando somente a sensação de conforto e segurança que transmitem um ao outro depois de anos eternos. As respirações tornam-se numa e, finalmente, o espaço entre eles desaparece com a doce imagem do verdadeiro amor a ser partilhado, num beijo sempre sonhado e desejado por ambos nos sonhos mais selvagens da memória mais recôndita.
Aí ficou a promessa de uma luta eterna pelo que realmente importa para eles, o verdadeiro amor.
Eles amam-se.
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Valentina
RomansaUma relação proibida numa sociedade pragmática. Uma luta eterna pelo amor.