Apenas Mais Um Dia

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Come as you are, as you were,
As I want you to be, as a friend,
As a friend, as an old enemy (...)
As an old memory, memory,
Memory, memory

(Come as you are - Nirvana)

POV Ian

Era apenas mais um dia.

Minha nova vida era uma interminável procissão de dias tristes e terrivelmente iguais. Eu estava arando a terra, concentrado no trabalho como se o mundo ao redor tivesse deixado de existir, porque, na verdade, tinha mesmo. Desde que o Sol tinha se posto para mim, eu apenas concentrava minhas energias no minuto presente, ignorando o buraco negro que se abria diante de meus olhos quando, por segundos, eu abandonava minhas defesas e vislumbrava o futuro.

Era apenas mais um desses dias.

Ou pelo menos foi o que pensei quando acordei e, como em todas as manhãs, saboreei o milésimo de segundo antes do despertar completo da minha consciência. Aquele breve momento em que o cérebro da gente ainda está sendo devidamente "ligado" e parece que tudo de ruim não aconteceu de verdade.

Acho que a maior parte das pessoas não se dá conta da existência desse instante, porque eu mesmo poucas vezes tive consciência dele antes de tudo acontecer. Mas nos últimos tempos, era ele que me salvava a vida. Era por causa daquele breve momento em que eu acordava achando que nada tinha mudado, e conseguia imaginar Peg despertando ao meu lado, que eu abria os olhos.

Por causa disso e porque não houve uma só noite em que eu não a visse morrer nos meus pesadelos. De novo e de novo, num ciclo infinito de autopunição. Como se houvesse algo naquela cena reprisada em minha mente indefinidamente, que eu ainda não tivesse visto.

Mas naquela noite, não sei por que, não tive esse pesadelo. Sonhei com algo que me fez sentir ainda pior. Sonhei com um bebê brincando na beira da praia, como na minha primeira noite com Peg. Era estranho para um morador do deserto sonhar constantemente com a praia, como acontecia comigo naquela época, mas havia um mar dentro de mim. Um mar revolto, cujas águas se acalmaram quando o Sol nasceu em minha vida.

Porém, o Sol havia se posto, as águas do mar eram escuras e profundas demais e afogavam tudo o que tentava respirar ao seu redor. Não se podia mais ver a brancura da areia. Apesar disso, naquela noite, o bebê estava lá e eu podia vê-lo brilhar através da escuridão.

Acordei sentindo meu coração arder, mas não havia espaço para mais tristeza em mim. Levantei-me da cama, mais cedo até do que de costume e, depois de passar pelo insuportável ritual diário de ter que compartilhar a cozinha com os outros na hora do café, fingir para Kyle, Mel e Jamie que eu estava melhor e me desviar dos cuidados de Sunny, pude me entregar ao trabalho.

Eu me sentia culpado por isso, por tentar enganar meus amigos e família, mas era preciso. A dor que eu sentia era só minha, não precisava ser imposta a mais ninguém. Até porque eles já carregavam a sua própria. Mesmo assim, eu me sentia culpado, especialmente por Sunny. Quer dizer, os outros, em algum nível, tinham consciência do meu fingimento, mas o aceitavam porque era um consolo conveniente pra eles. Já Sunny não era assim, ela não perceberia uma mentira mesmo que estivesse dançando hula-hula na frente dela. E o pior de tudo é que minha cunhadinha vinha, nos últimos tempos, se desvelando em cuidados maternais comigo.

Era Sunny quem ficava no meu pé para me manter apresentável, cortar o cabelo, fazer a barba, usar roupas limpas... Era ela que vivia reclamando de como eu passava tempo demais trabalhando ou fechado no quarto e que devia sair mais pra conversar e jogar bola com os outros. Ela insistia que eu precisava me alimentar melhor e trabalhar menos, porque tanto exercício físico estava me fazendo emagrecer... E blá, blá, blá... Todas aquelas coisas de uma inocente irmãzinha mais velha, que não entendia que eu precisava mortificar meu corpo para não perceber que minha alma podia morrer a qualquer instante, e que meu coração estaria para sempre vazio. Antes estivesse morto.

A Hospedeira - Coração DesertoOnde histórias criam vida. Descubra agora