Rapaz Perdido

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Acordei com o sabor de sangue na minha boca, estava numa rua qualquer. A confusão no meu rosto devia estender-se na minha expressão.

- Então pensas-te que ias embora assim? Que fugirias outra vez David?

- Certamente não pensei que fosses estúpido o suficiente para me seguir. E claro que troces-te o gangue todo atrás...

Ele não tinha mudado nada, continuava o mesmo de sempre... E pensar que um dia fomos amigos, que tive pena dele por ter perdido os pais quando jovem, identifiquei-me...

- Tu não mudas-te nada.

- Nem tu, olha para ti a fugir outra vez. Fugis-te quando eu precisava de ti, eras como um irmão. Irmãos não mentem, não se abandonam.

Os amiguinhos dele agarravam-me pela camisola agora rasgada. E ele sorria a cada murro que me dava.

- Tu abandonas-te-me... Aliás não fui o único, aquela miúda na praia, ela parecia-te próxima, mas no entanto deixas-te-a no hospital. Porquê essa cara? Não é verdade?

- Eu não sei do que estás a falar.

- Sabes muito bem David... ou Dilan.

- Ian deixa-me ir, já te divertis-te o suficiente não?

- Pensas que isto é divertido?

- Pelo menos sê grandinho e enfrenta-me sem estes três aqui de volta, continuas o mesmo cobarde.

Ele fez sinal e dispensou os coleguinhas de grupo, fiquei ali sentado naquele canto da rua escura a ouvir as suas lamentações, ainda não sabia como me tinha achado e trazido até aqui. Onde estaria Constança? Devia estar preocupada...

- Tu não sabes o que passei... Eu esperei... Tu disseste que me vinhas buscar, disseste que íamos ter uma vida melhor longe dali e no entanto foste embora com aquela gaja. Diz-me uma coisa David, olhas-te sequer para trás?

Éramos putos naquela altura, o que é que ele quer? Que eu peça desculpa? Que implore? Não ia acontecer. Mas ele continuava com as acusações.

- Eu tirei-te das ruas, ajudei-te... Os teus pais abandonaram-te e tu fizes-te o que fizes-te...

- Eu não fiz nada, esse David morreu. Devias esquecer essa merda de passado...

- Eu nunca esqueci, nem esquecerei... Tenhas qualquer nome que tiveres a tua face é a mesma e ela denuncia-te pelos atos do passado.

Levantei-me, a minha perna estava ferida, passei por ele a caminhar sem olhar para trás.

- Ouve David, ela não é quem pensas, ela não te ajudou, muito pelo contrário.

Parei á espera que ele se esclarecesse.

- Foi ela. A Constança...

Ele estava com cara séria, fitava-me e parecia que recordava aquele dia, aquele maldito dia.

- Foi ela que o atropelou.

- Cala-te! Não atires a culpa em Constança!

- Não estou... Tu culpas-te-te pelo que aconteceu, os teus pais culparam-te, abandonaram-te. Tu vais descobrir o que aconteceu mas não vai ser pela minha boca, eu tenho a consciência limpa.

Ele avançou até mim e passou de raspão. Parou para aquelas que seriam as suas ultimas palavras antes de entrar na porcaria do carro, cheio de bebidas, duas gajas e os amigos que riam da cena.

- E tu David, tens a tua?

O carro afastou-se e deixou-me ali naquela rua que eu não conhecia e que o único sinal de vida era um gato preto empoleirado na borda do caixote.

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