-18th-

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Quarta-feira, 2 de Março de 2016.

Sempre odiei que utilizassem um meio-termo comigo, no entanto sempre os adorei. A primavera e o outono, por exemplo, são um meio-termo e talvez seja por isso que tenho um pequeno fascínio por estas estações. Quando era pequeno e passava os meus dias sozinhos numa pequena floresta em South Yorkshire, minha terra natal, dava por mim a observar os fenómenos que aconteciam lentamente, silenciosamente, ocultos na sombra do desconhecimento. Quase todas as pequenas mudanças eram ignoradas pela maioria dos humanos, porém eu dava-lhes atenção.
Não devia ter mais do que os meus seis, sendo que fui internado por volta dos sete, no ano seguinte, mas isso é história para outro dia. Regressando ao assunto principal, passei cerca de um ano refugiado na natureza, observando as inúmeras mutações que ocorriam mesmo por baixo do nariz dos demais.

Durante a primavera via as flores crescerem, sentia o ar tornar-se adocicado, via os esquilos regressarem à vida, pássaros a retornarem das suas migrações e, sobretudo, via os dias ficarem mais alegres, mais vivos. No verão a floresta não era mais do que um meio húmido onde se encontravam ouriços-cacheiros e, com muita sorte à mistura, corças elegantes e astutas. Afinal, Inglaterra nunca teve uma fauna densa. No outono as paisagens modificavam-se e o ar ficava mais denso, um denso agradável. Era aconchegante. As cores outonais, a partida dos pássaros, as formigas em reboliço. De facto o outono era belo em demasia, tal como a primavera.
Depois havia o inverno.
Um meio melancólico, sisudo e penoso. Não havia vida para além de um animal aventureiro que de tanto em tanto se fazia notar. Não havia nada. Era tudo vazio, tudo triste e sem vida, tal como eu. Na verdade, a única coisa que me parecia manter vivo era a pequena e ainda desconhecida (naquela altura) habitante da minha mente. Ela era a minha primavera, o meu rejuvenescimento e, de alguma maneira, a minha confidente. E era também o meu outono, o meu aconchego, a minha única esperança de passividade num mundo onde, para mim, tudo era agressivo, sádico, malévolo. Dito isto, penso que todos entendemos porque mantenho o meu fascínio por estes meios-termos anuais.

A sua respiração pacífica envolvia a atmosfera enquanto os meus pensamentos fluíam livremente. Lembro-me de acordar ainda de noite e desde então não tive mais coragem para adormecer. Não que estivesse mal, muito pelo contrario, estava a dormir extremamente bem, como não dormia em anos, somente queria olha-la o mais detalhadamente possível durante todo o tempo que me fosse permitido. Queria apreciar cada detalhe da minha primavera outonal, desde o pequeno sinal negro que desponta no final da sua sobrancelha esquerda à pequena cicatriz na sua bochecha, resultante de uma borbulha rebelde. Um pouco obsessivo, eu sei.

A criatura mais bela do meu mundo movimentou-se, remexendo-se sobre o meu peito. Durante o sono Victoria não me largou, nem tão pouco aliviou o seu aperto sobre o meu peito. Não me queixo disso, aliás, foram as melhores horas da minha vida. Movi lentamente o meu braço, alcançando o seu cabelo sedoso, passando os dedos cuidadosamente ao longo do mesmo, apanhando vários nós à medida que chegava às pontas. Tracei ao de leve os contornos da sua cara demorando um pouco mais nos seus lábios, pensando no quanto daria para os sentir uma misera vez.

-O teu toque é doce. Como caramelo.- Retirei a mão do seu rosto com o susto. Estremeci quando ela suspirou profundamente, observando depois as suas longas pestanas afastarem-se num modo sonolento. Os seus olhos estavam brilhantes e extremamente claros, um verde cristalino agora com rasgos cinzentos.

-Não queria acordar-te.- Desculpei-me num tom baixo.

- Não peças desculpa, acordar assim é bom. Quase como comer chocolate.- Rouquejou sorrindo ternamente.- Não estou a dizer coisa com coisa, pois não?- Olha-me de forma divertida.

- Não propriamente, mas gosto do teu humor matinal.- Ela riu-se com a minha resposta e afastou-se de mim, sentou-se e coçou os olhos. Depois olhou em frente, piscando-os repetidamente.

Delirium ➵ L.TOnde histórias criam vida. Descubra agora