Introdução - Memórias de Uma Casa Vazia

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1943

- Corra! Pelo amor de Deus, Bea, corra para o porão! Antes que...

Lorenzo não conseguiria terminar a frase. Vinte anos após a desintegração e reconstrução da família Sforza, a enorme abóbada envidraçada que fizera com quem o céu assistisse durante séculos as desgraças e alegrias daquela família, se estilhaçava em mil pedaços com o impacto de uma bomba. O afresco renascentista no teto que retratava a expulsão do Éden tinha suas formas perdidas pelos pedaços de parede que caíram no chão, levantando uma cortina de poeira que fazia arderem e lacrimejarem os olhos negros do homem.

O patriarca dos Sforza correu, primeiro preocupado em empurrar a esposa para longe dali. O corpo de Lorenzo ainda era saudável para um homem de cinquenta anos, mas já perdera muito de sua agilidade. Poupara Bea, mas ele próprio fora cortado pelos estilhaços de vidro que se precipitaram do teto. Correu para o porão, e após se certificar de que todos os filhos estavam lá, passou um lenço pelo rosto, limpando o sangue dos cortes e o suor tenso de ver ameaçada a vida dos seus.

Era 1943, e a guerra tomava Veneza, após a ocupação nazista. O homem olhou para seus filhos,Giovanni e Tiziano, ofegante. Havia movido fortunas para poupar os meninos da guerra. E agora a guerra havia chegado à seu confortável palácio. Lorenzo Sforza ainda era um homem belo, não havia engordado como acontecia aos homens de sua idade, mas as partes grisalhas em seus cabelos negros o deixavam atraente, seu porte alto e bem feito e seus olhos negros somados à idade que começava à avançar lhe davam um tom de severidade e de respeito que era absolutamente marcante.O único grande efeito da idade no homem era um pequeno problema no coração que a princípio não o mataria, mas poderia se agravar. Sua casa fora bombardeada, uma herança de séculos quase destruída, seus filhos e sua esposa arriscados, e ele não havia tido um infarto.

Giovanni Sforza estava irritado.O primogênito não era mesmo talhado para a guerra. Não chegava a ser magro demais, mas era esguio, tinha a pele pálida e delicada dos Sforza e seus modos excessivamente refinados, era o tipo de rapaz muito belo e que por não parecer bruto, arrancava suspiros de todas as moças da cidade. Ele se aproximou do pai e carinhosamente abraçou Lorenzo, passando a mão pelo rosto do homem e olhando com aqueles seus olhos tão negros quanto os de todos eles. A figura de Giovanni carregava em si tamanha elegância que destoava do porão da casa, apinhado de caixas, sucatas sem importância e acoplado a um armazém de cereais, um lugar cuja única iluminação vinha de pequenas claraboias arredondadas. Havia ali um forte cheiro de mofo que fazia o filho mais velho coçar o pequeno e pálido nariz.

- Papai. O senhor está bem? Como está o coração? - disse o rapaz, que logo se afastou para umedecer um lenço em álcool e ajudá-lo a limpar os ferimentos.

- Está bem, meu filho, está bem. - o homem caminhou de um lado para o outro, com as mãos nos bolsos do fraque após ser ajudado pelo filho - Teremos que partir. Giovanni, Tiziano...Eu...Já esgotei todas as possibilidades para evitar que não fossem tocados pela guerra. Temo que estejamos chegando a uma situação que o meu dinheiro já não comprará mais suas vidas...E que talvez ninguém precise ir para a guerra. Ela chegou até nós.

Giovanni se sentou numa pilha de caixas de mantimentos armazenados no porão. Ele parecia irritado com aquela ideia. O rapaz fora criado como um príncipe. A melhor educação, as roupas mais refinadas. Aulas de inglês, francês, piano, esgrima, cálculo e direito. Subitamente corria o risco de ter de viver num país tropical e cheio de mosquitos...Mas aquelas eram as preocupações que transtornariam um menino rico qualquer. O rapaz escondeu o rosto com as mãos, ele sabia muito bem quem vivia no Brasil, sabia bem com quem poderia cruzar.. .

- Prefiro ir para a guerra do que ir para o Brasil.

- Não estou perguntando o que você quer, meu rapaz. Estou dizendo o que iremos fazer. - disse Lorenzo, o tom de voz do homem era firme, e adquiria aquele caráter de trovoada, não raras vezes. - Já mandei comprarem uma casa para nós. Meu banco vai bem...Uma boa chance de poupar nossas vidas. Há uma faculdade de Direito em São Paulo. Você não ficará sem estudar... Por Deus, sou um membro da Resistenza partigiana. Vão tomar tudo o que é nosso e ai sim você vai ver o que é uma vida sem luxo nas mãos dos nazistas. Vão nos fuzilar, a todos nós!

Sob o Signo da SerpenteDonde viven las historias. Descúbrelo ahora