I - O Acordo

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1919

Era tarde da noite, mas os poucos transeuntes que restavam pelas ruas de Veneza se reuniram em torno dos policiais que estendiam um corpo sem vida, retirado dos canais. Uma jovem ainda adolescente, cujo rosto já se encontrava deformado pela morte, a pele pálida,os lábios roxos e o corpo inchado pelas águas escuras do canal. Era o sexto caso idêntico apenas naquele ano, os desaparecimentos de mulheres jovens,seguidos por seus corpos encontrados nos canais pouco tempo depois já haviam virado uma lenda que fazia com que todos os pais recolhessem suas filhas ao anoitecer, alguns corpos, no entanto, jamais apareciam. 

Já não se perguntava mais pelo culpado, porque todos silenciosamente o sabiam e a policia temia que suas investigações apontassem para o óbvio desde que as testemunhas relatavam : a carruagem escura ficava parada na rua, a moça era escolhida e raptada, seguiam então na direção do mesmo palacete. Havia quem dissesse que avistara a carruagem entrando pelos portões daquele lugar. E justamente por isso, ninguém ousava se pronunciar.

Apesar do silêncio prudente das autoridades, a vida de cada habitante do palacete precedido por imenso portão e um jardim que era quase bosque, estava na boca de toda a população já há algum tempo. Eram três irmãos, nenhum deles, ainda que todos jovens e excepcionalmente belos, jamais se colocava publicamente na intenção de casamento ou filhos, de maneira que era quase como se quisessem evitar deixar sua prole pelo mundo,ou talvez Deus assim quisesse para privar a humanidade de semelhante gente, era o que diziam.

O que causava mais repúdio era Lorenzo Sforza, o primogênito, um homem belo que tinha a mesma aparência dos demais, cabelos e olhos tão pretos que era difícil distinguir as íris das pupilas, o corpo forte de um homem que praticava lutas e esgrima, como se sempre corresse perigo varando noites em bordéis e esbanjando em ópio e jogo largamente toda a fortuna que herdara e que parecia nunca terminar. Estranhamente seus negócios eram os mais sólidos e bem conduzidos, de modo que a fortuna e o poder da família jamais paravam de crescer e havia mesmo famílias, que apesar da terrível fama do homem, lançavam suas filhas como objetos de troca para que ele as escolhesse como esposas.

A única mulher da casa já fora tomada como a flor mais bela da sociedade, ao contrário do que faziam com as mulheres, a mandaram estudar longe e quando retornara, após a morte da mãe, não apenas era linda como profundamente refinada e instruída. Não fosse seu comportamento escandaloso, jamais teria caído naquela situação...A princípio eram saraus de poesia e artes, depois começaram a comentar sobre orgias e por fim havia quem dissesse que a moça sofria de perturbações e perversões cuja natureza poucos ousavam especificar. Todas as propostas de casamento eram também negadas o que não parecia enfurecer os homens de sua família. Até que vieram boatos de ordem mais sinistra.

O murmúrio das criadas relatava o som de estranhos cânticos pela casa, até que por fim um padre que a insultara em público aparecera morto, com os olhos arrancados e sinais riscados pelo corpo. Desde então a jovem Francesca Sforza jamais se atrevia a sair na rua. Quando a viram tentaram lincha-la, jogavam coisas e gritavam acusações. Desde aqueles tempos a casa se tornou uma fortaleza e , diziam as criadas, que eram de um número cada vez mais reduzido, que ela construíra um mundo a parte dentro da casa. Mandara construir galerias e comprara coleções inteiras de museus para passear por eles, solitária, contratava artistas para comporem poemas,músicas e escreverem e encenarem peças , que ela assistia sozinha em sua casa. Havia três anos que ela jamais cruzava os portões da mansão.

Por fim havia o mais novo dos irmãos e também o único que poderia ser bem quisto,mas não disputado como um partido. Cesare era um bastardo sem direito a nada, que os irmãos pareciam acolher por piedade, se é que aquela gente era capaz de possuir tal sentimento. Não usava as roupas luxuosas, não passava a noite em bordeis e era até ignorante nos assuntos de negócios. Era apenas um músico que tocava violino pelas ruas da cidade, sem que jamais uma palavra de condenação pudesse se referir a qualquer um de seus atos. O que fazia morando naquela casa, era algo que ninguém compreendia.

Sob o Signo da SerpenteDonde viven las historias. Descúbrelo ahora