NO DIVÃ COM WOODY ALLEN

81 0 0
                                    


Ele não tem o carisma de Marlon Brando, nem os olhos de Mel Gibson, nem a

sensualidade de Mick Jagger. Se você passar por ele na rua, é capaz de não reconhecê-lo. Não

dá muitas entrevistas. Não vai à entrega do Oscar. Não vive como um nababo. Foi

protagonista de um escândalo, é verdade, mas dispensa esse tipo de publicidade. Ele é feio.

Maníaco. Nervoso. Senhoras e senhores, meu ídolo, Woody Allen.

Engraçado, não estou ouvindo aplausos.

Pudera. Woody Allen está longe de ser uma estrela, uma unanimidade. Recusa todos os

artifícios que produzem glamour. Raramente bota os pés em Los Angeles. É dos poucos

diretores de cinema que não trabalha com efeitos especiais, mega-orçamentos ou femmes

fatales. Não estoura bilheterias. Apesar de ser muito respeitado pela crítica, não raro é

acusado de fazer sempre o mesmo filme, com o mesmo personagem: ele mesmo. Touché.

Chegamos ao verve da questão.

Woody Allen faz sempre o mesmo filme, sim, e com o mesmo personagem. Só que esse

personagem não é ele somente: sou eu, você e o vizinho esquisito do andar de cima. O ser

humano, com sua fragilidade, suas dúvidas, sua ternura, sua hipocrisia, sua tara, sua neura, sua

ingenuidade e suas trapaças é sempre o astro dos filmes de Woody Allen, seja esse ser humano

interpretado por ele mesmo ou por Alan Alda, Dianne Keaton ou Mira Sorvino. Homens e

mulheres, tanto faz: o elenco inteiro interpreta o espectador, ali escondido no escurinho do

cinema. Os filmes de Woody Allen iniciam do nada e terminam de repente, parecem muito com a

vida. Não existe cenário, não há futurismo nem lançamento de modismos: todos comem e

bebem o mesmo que nós, andam por ruas de verdade e moram em apartamentos com cozinha,

janelas e porta-retratos. Dá até para sentir a calefação. Sexo, drogas e rock'n'roll? Tsk, tsk.

Carência, vinho e jazz. Mesmo assim, os finais são sempre animadores, não importa quem fica

com quem, ou se alguém fica sem ninguém. Todas as opções são aceitáveis. A felicidade é uma

isca pendurada na altura dos olhos. Tentar alcançá-la é o que nos move.

Seus roteiros não manipulam os sentimentos da platéia. Não há a hora do medo, a hora

do suspense, a hora do alívio. O filme desliza, escorrega, nos pega pela mão. Já interpretamos

todas as cenas, sabemos como tudo vai acabar, somos co-autores de suas obras. Vivemos a era

do rádio. Somos camaleões. Nos apaixonamos pela pessoa errada. Queremos que o galã pule

da tela. Questionamos a existência, o casamento, o espermatozóide que morreu a caminho da

consagração. Temos medo. Somos anárquicos, claustrofóbicos, infantis, geniais. Temos, todos,

a mesma história para contar. Woody Allen só se encarrega dos diálogos.

A realidade, é claro, não nos basta. Assim como as crianças precisam do Aladim, da

Branca de Neve e dos Power Rangers para habitar suas fantasias, nós, crianças grandes,

precisamos do Robocop, do Cyrano de Bergerac, da Kim Basinger. Precisamos de um corpo

de lata para encarnar nossa própria violência, um nariz grotesco para inspirar nossa poesia,

um belo par de pernas a serviço do nosso erotismo. Precisamos de símbolos, e Hollywood

nos serve com competência nessa catarse. Mas de vez em quando é bom lembrar que há

sangue de verdade correndo em nossas veias, e para isso não é preciso vê-lo derramado na 

tela. Um pouco de romance, uma pitada de frustração, uma oferta caída do céu, sonhos

desfeitos, um dia se ganha, outro se perde, não é mais ou menos assim com todo mundo? Não é

preciso ter lido o roteiro para saber o final da história. Basta fazer como Woody Allen:

aprender a se divertir com a repetição, com a banalidade, com o previsível. Ri melhor quem ri

apesar de tudo.

ToplessOnde histórias criam vida. Descubra agora