Abril de 1997

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19 anos atrás...

Para: Alberto

Alberto, como vai?

Eu e Julie vamos muito bem. Graças a Deus temos uma vida confortável, apesar dos pesares. Ainda assim, existe uma coisa que anda incomodando-a: ela quer conhecê-lo. Essa carta tem o único intuito de promover uma tentativa de apresentar à sua filha quem é seu pai. Espero que deixe seu orgulho de lado e considere esse pedido. Ela não teve culpa de nada, e merece isso. Por favor, responda.

Helena.

***

- Onde ele tá mãe?

- Ele vai estar aqui logo, Julie. Ele é sério, mas não precisa ficar com vergonha.

Julie e sua mãe esperavam ansiosamente no local marcado para o encontro. Julie nunca viu o pai antes. A única figura paterna que conhecia era seu avô, a quem ela amava muito. Tinha o desnaturado do seu padrasto, mas ele não contava.

Ela estava nervosa, mexendo o tempo todo nas mãos, que suavam mais que o normal, até enfim chegar ao seu campo de visão a moto.

A moto que estava sendo conduzida por um homem desconhecido. Física e emocionalmente desconhecido.

Helena olha-a com uma expectativa desnecessária.

Ela era uma criança.
Apenas cinco anos. Alguns diriam que é cedo demais para confirmar algo sobre a personalidade dela. Mas Julie era diferente. Bastava uma atenção minuciosa para constatar que realmente era filha desse rapaz da moto, pois era introvertida e extremamente orgulhosa para sua idade.

Julie não olhou para ele enquanto ele estacionou e vagarosamente, ou pesar demasiado, desceu da moto. Julie olhava apenas para os pés grandes que se aproximavam mais e mais, até que pararam em sua frente. Só então, Julie levantou a cabeça com um olhar desdenhoso, e lá estava ele:

O total estranho.

Ela pensou que havia algo de errado com sua cabecinha, com seu coração, porque ela não sentiu vontade de abraçá-lo ou lhe dirigir qualquer palavra.

Ela pensou que talvez fosse diferente das outras crianças, as crianças que eram carinhosas com seus pais. Naquele exato momento, Julie estava totalmente desprovida de emoção, e sabia que não deveria ser assim, mas nada podia nem queria fazer.

O que ela não sabia, é que isso foi o mero resultado de toda uma pequena vida longe de gestos carinhosos, protetores, atenciosos, e até mesmo simples telefonemas desse estranho que se encontrava na sua frente.

- Tudo bom?

Julie sorriu forçadamente com a boca fechada e afirmou com a cabeça. Julie estava quieta. Muito mais quieta que o normal.

- Olá, Alberto! Quanto tempo?! Esse encontro deveria ter acontecido muito antes.

Ele não esboçou nenhuma reação. Só ficou ali parado, tomando o cuidado de sempre desviar à vista dos olhos de Julie.

- Ando ocupado.

Helena puxava diversos assuntos aleatórios e ele continuava frio e distante. Julie também. Ela nunca olhava mais do que 2 segundos para ele. Ela olhava os ônibus que passavam, as folhas que balançavam ao vento, os sacos de pipoca e cigarros jogados no canto do acostamento.
Sem dúvidas, Julie realmente era filha de quem é.

- Ela é muito quieta e calada. Podemos dizer que é sua Xerox.

- É.

Julie queria muito ir embora dali. Então se aproximou da sua mãe e sussurrou no seu ouvido:

- 'Vamo', mãe. Quero fazer xixi.

Helena riu. Alberto não. Ele permaneceu fisicamente perto, mas emocionalmente longe. Nada de anormal vindo dele. Era ridículo esperar algo diferente disso.

- Está bem, Julie. Nós vamos para casa. Quer dar um abraço no seu pai?

Julie hesitou descaradamente e olhou profundamente para a mãe. O olhar que diz exatamente: ''Não!'' mas Helena ignorou.

- Só um abraço Julie.

- É cedo. Tudo tem seu tempo.

Disse a voz do figurante da peça de circo, representando o papel de pai. Helena a induziu pelo braço até ele e relutantemente ela o abraçou prendendo a respiração.

Foi um abraço vazio. Automático. Nem pareciam pai e filha, e sim, dois robôs. Eles se afastaram rápido, muito rápido. Por fim, ele virou as costas, e sem se despedir e olhar para trás, montou em sua moto e se foi.

- E aí, Julie? O que achou do seu pai?

- Não gostei, Mãe! Eu não queria abraçar ele! Ele é chato. Eu não queria abraçar ele... Não quero ver ele nunca mais!

Quem Eu Deveria Ser? (Não Revisada)Onde histórias criam vida. Descubra agora