CAPÍTULO 9

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O casal Aguiar tinha cinco filhos. Os três homens tinham a altura do pai e as duas mulheres tinham o popozão da mãe. Márcia Aguiar contou que uma delas virou modelo e viajava pelo mundo todo. A outra era estilista, muito bem paga. O filho mais velho, Miguel, era dono de uma revendedora de carros usados. Ela não contou que ele precisou mudar de cidade e transferir seus negócios por não conseguir saldar as dívidas com agiotas. Não tinha porque contar esses detalhes. O filho do meio, Ezequiel, era caminhoneiro.

O filho mais novo era o que dava mais trabalho. Vivia desempregado, e sempre ligava pedindo dinheiro.

_Não conte a ninguém – Márcia comentou. – Na verdade, temos mais dinheiro do que podemos gastar, o Orlando e eu.

Depois do chá frio, agora elas comiam cookies e tomavam um café que Alessandra, já recuperada do susto, havia passado.

_Ganhávamos bem quando trabalhávamos. Eu na estrada e ele na oficina. Agora, com a aposentadoria, temos mais do que precisamos. Sabe, nós não gostamos de viajar. Tão cansativo. Sair de casa, e só Deus sabe o que pode acontecer no caminho. Não temos vícios, se você desconsiderar a cervejinha do Orlando – ela acrescentou em voz baixa, sorrindo. – Não ligamos para carro e nem reformamos a casa mensalmente como alguns casais de aposentados malucos que conhecemos. Nossos filhos estão longe e só aparecem no final do ano. – Preferiu não mencionar o mais novo, que sempre ligava pedindo dinheiro. – Então nós fazemos festas, chazinho da tarde, almoços e jantares pros amigos íntimos. A única coisa que importa na vida, pelo menos na nossa idade, é estar cercado por muitos amigos, o máximo de tempo possível. Por isso as festas. Por isso venho te importunar todo dia.

_Que é isso. A senhora não incomoda em nada.

_Ora, querida. Sei que às vezes eu incomodo sim. Ninguém é perfeito. E eu pensei que você já tinha parado de me chamar de senhora!

Alessandra sorriu, a boca cheia de migalhas.

_Desculpe. Márcia. – Alessandra se sentia bem.

_Mas e "você", meu bem? Fazia o quê da vida antes de casar? Não me diga que passou a mocidade se preparando para ser esposa e dona de casa.

Alessandra fungou, lamentando. Algumas pessoas têm estudo, fazem faculdade; outras têm desculpas. O caso dela era o segundo.

_Nunca fui muito de estudar – ela admitiu. – Tudo que minha mãe esperava de mim era que eu soubesse lavar e passar, que fosse boa mãe e empregada eterna do lar, assim como ela. Meu pai também nunca fez questão que eu fizesse faculdade. Eu também não tinha o menor interesse. Na época, eu era uma preguiçosa apaixonada.

_E agora você é só uma apaixonada – Márcia brincou.

Alessandra concordou.

_Porque sua casa está sempre organizada – ela disse. Alessandra sorriu, constrangida. As duas sorriram. Sua compulsão por limpeza agora parecia engraçada.

_Eu acabei deixando a faculdade para depois e comecei a trabalhar. Então eu descobri que, sem estudo, sem aumento. A preguiça da adolescência deixou marcas profundas na minha carreira profissional. E quando o casamento foi acertado, dei adeus para sempre ao sonho do diploma.

_Mas você chegou a trabalhar, então?

Alessandra fez que sim.

_Foi num supermercado. Fiquei por lá um ano e meio, apenas. – Ela coçou o cabelo acima da orelha e tentou lembrar. – Comecei como operadora de caixa. Mas um dia o gerente, na época era o escroto do Fabio, viu como fui dura com dois garotos que tentavam passar pelo meu caixa com carrinhos escondidos nos bolsos, e me promoveu para a segurança patrimonial. O aumento no salário foi imperceptível – quem quer receber altos salários não deve procurar emprego no comércio, e muito menos em supermercados.

_Mas você gostava?

Alessandra tentou lembrar. A quanto tempo não lembrava dessas coisas? Ela sabia que havia um motivo.

_Acho que sim – ela falou. – Pelo menos do que me lembro.

_Mas segurança? – Márcia falou, ironizando. – Quer dizer, uma mulher magra, baixa e, desculpe, fraquinha como você.

_Era segurança patrimonial – Alessandra explicou. Realmente, com seus poucos metros de altura, ela teria problemas para intimidar ou, se necessário, imobilizar agressores de mulheres ou aqueles valentões que, vez ou outra, se esbarram nos corredores das lojas e se estranham como cães raivosos. Às vezes um olhava para a mulher do outro, mas qualquer desculpa servia. – Eu ganhei um uniforme bonito, tipo terninho, que por sinal me caiu muito bem, e um rádio portátil que carregava preso ao cinto enquanto passeava pela loja.

Ela explicou que seu um metro e quarenta realmente não intimidaria os marrudos briguentos; porém, era mais do que suficiente para assustar crianças que pretendessem violar embalagens nos corredores de brinquedos.

A senhora Aguiar ficou por lá até quase a hora do almoço, quando se despediu, pediu desculpas por qualquer coisa, e foi fazer seu próprio almoço.

_Eu é que agradeço – Alessandra falou, fechando a porta. Ela agradecia mesmo.

Foi a muito custo que conseguiu bloquear aquela lembrança enquanto conversavam. Senão, era certo que teria chorado de novo.

Ela sempre tomava banho no vestiário do supermercado antes de voltar para a casa. Gostava de pegar o ônibus com o corpo perfumado, nem que fosse de sabonete, e não com o cheiro do suor de um dia de trabalho. Ela se lembrava perfeitamente dos azulejos brancos encardidos, das torneiras com vazamento e dos suportes para toalha enferrujados. Ela nunca andava descalça, porque sabia que algumas mulheres urinavam no chuveiro. E certa vez, poucos meses antes de deixar o trabalho de vez, ela fechou o registro do chuveiro e esticou a mão para pegar a roupa. Ela tocou, e percebeu que aquilo não era sua calcinha azul listrada. Alessandra afastou a mão com repulsa e olhou direito, só para confirmar aquilo que já sabia, então gritou. Ela deu uns passos desajeitados para trás, escorregou no chinelo e caiu, bateu a cabeça na parede e desmaiou.

Quando a encontraram, ela ainda estava inconsciente. As mulheres a secaram e vestiram e depois a levaram à enfermaria. Ela contou o que aconteceu e perguntou se haviam visto a lesma no azulejo, no box onde ela estava tomando banho. Ninguém tinha visto!

Acabou levando uma reprimenda, porque sua fobia estava passando dos limites e afetando sua vida pessoal e, agora, até sua segurança pessoal. Disseram que ela precisava fazer alguma coisa. E ela fez, embora não tenha adiantado muito.

Ela não procurou especialistas. Já sabia o que iriam dizer. Era apenas fruto de sua imaginação. Um trauma de infância cujos efeitos, como as ondas de um terremoto, continuavam se propagando a perder de vista.

Em vez disso, naquele dia, ela decidiu repensar todo o caso. Desde o tal incidente no berço, que ela mal se lembrava. Todas as vezes em que as lesmas apareciam, do nada. Será que os monstrinhos realmente a perseguiam?

Não precisou revisar muitas lembranças para ter certeza de que a resposta era sim.

A grande questão era: por quê?


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