CAPÍTULO 23

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Um pântano de dimensões continentais era onde as Matriarcas pastavam.

Imensas montanhas de meio quilômetro de altura que se arrastavam preguiçosamente sobre estradas de limo secretadas por elas mesmas. Não havia animosidade entre elas – embora, por respeito e bom senso, cada uma evitasse cruzar o território da outra. Sabiam que não era boa ideia manterem-se excessivamente próximas sem que houvesse para isso um bom motivo. Suas mentes ancestrais eram tão poderosas que, se apenas duas delas se esbarrassem sem aviso, algo poderia acontecer com a matéria ou com o tempo em volta. Algo poderia ser gerado, destruído ou distorcido; o resultado seria imprevisível, e as consequências, talvez, irreparáveis. Algo assim já havia acontecido algumas vezes, e o mundo e a sociedade das Matriarcas e de suas espécies subordinadas demorou a se recuperar dos efeitos de curto e longo prazo. Resumindo: não é fácil realinhar a órbita de um planeta, mesmo com tantas mentes unidas e tanto tempo disponível. Além disso, a matéria poderia tomar formas estranhas e, porque não, perigosas.

As Matriarcas, com corpos várias centenas de vezes maiores que os da Mãe, eram telepatas e telecinéticas poderosas. Capazes de enxergar os elementos químicos e compreender suas ligações, faziam alquimia usando apenas o pensamento. Enxergavam o universo quântico e podiam interagir com ele. Não era uma ciência que houvessem desenvolvido, mas um instinto natural, como comer ou dormir.

Quando algumas dessas Matriarcas se juntavam, eram capazes de criar elementos químicos do nada, elementos novos, que elas compreendiam perfeitamente. Suas mentes expandidas apreendiam toda a natureza do seu mundo, sua biologia, sua própria história e a realidade espacial de seu planeta abençoado com vida, uma pérola rara, num universo tomado pelo vazio e pela escassez.

A Mãe havia passado quase um ano terrestre cruzando respeitosamente aquele pântano. Algumas Matriarcas olhavam para ela, mas a deixavam passar sem perguntar nada. Elas sabiam de tudo que era preciso saber, sobre qualquer coisa. Sabiam o que ela estava pensando e quem a estava esperando. Mesmo sem telescópios, sabiam tudo sobre os planetas próximos ao seu e os sistemas solares vizinhos. Não possuíam armas ou tecnologia de qualquer tipo – mesmo alavancas simples lhes eram estranhas – mas suas mentes anciãs haviam evoluído e se expandido em níveis próximos da divindade.

A Mãe sabia onde a sua Matriarca estava, mesmo no meio daquela planície a perder de vista e tomada pelas montanhas que eram as outras governantes. Simplesmente, a mente de sua Matriarca era poderosa demais para ser ignorada. Mesmo a milhares de quilômetros, quando ingressou naquele gramado lodoso e sem fim, ela já podia sentir sua presença e a direção que devia seguir. A Mãe podia ouvir seus pensamentos intensos, sua voz chamando-a. Seis cérebros em ressonância...

Assim como Danilo e a Mãe, a Matriarca também possuía três cérebros, perfeitamente independentes e integrados. Era essa uma característica da espécie (e todos, tanto a Mãe, como a Matriarca, e aqueles que haviam nascido na terra, faziam parte da mesma família. Eram uma mesma espécie, só que com diferentes níveis de evolução.). Um gastrópode alienígena podia nascer destinado a ser um macho inútil, uma fêmea dominante, como a jovem Mãe, ou algo mais elevado, quase divino, como as Matriarcas – caracóis do tamanho de montanhas que enxergavam as regras do universo.

Graças aos três cérebros, desde o primeiro pensamento, estes espécimes sabem o que é cooperação, e é esta uma característica marcante em sua sociedade.

Como dito, suas mentes são tão poderosas que elas evitam se aproximarem ao acaso, com medo do que possa acontecer. Mas há ocasiões em que elas se unem por um propósito. São aquelas, exatamente, em que os seus poderes são necessários.

Quando duas ou três Matriarcas se unem, são capazes mesmo de criar elementos químicos e brincar com algumas leis da física no entorno. Isso geralmente não passa de uma brincadeira ou de alguma experiência que precisam repetir de vez em quando, apenas para não perder o jeito.

Mas quando milhares delas se unem, e elas não veem dificuldade alguma em se unirem quando necessário, essas criaturas imensas, as Matriarcas do tamanho de montanhas, agrupadas em círculo sobre uma superfície úmida, como um lago, por exemplo, são capazes até mesmo de abrir portais no espaço, de dobrar a estrutura do tempo e, através dessa abertura, viajar pelo universo.

Embora elas próprias não sejam capazes de penetrar por estes portais, através de incontáveis eras, as Matriarcas vêm enviando emissários para novos mundos descobertos através destes portais. O objetivo: a colonização.

Sabiam que seu mundo verde era uma joia rara num universo desolado e frio. E sabiam que ele não duraria para sempre. Não era algo que incomodaria as próximas milhares de gerações, mas era uma realidade inevitável que precisavam, e decidiram por consenso, levar a sério. E o plano, para funcionar, precisava ser iniciado o quanto antes.

Por isso, a Mãe estava ali. Fora convocada telepaticamente pela sua Matriarca; embora a "voz" dela não tivesse sido a única ouvida na mensagem.

Alguns, mesmo no nível da Mãe, mas especialmente nas subespécies abaixo dela, acreditavam que existia algo ainda maior do que as Matriarcas. Uma Rainha. Uma forma enorme cuja consciência abarcaria todo o planeta e todas as mentes nele. Nenhuma das subespécies jamais a vira, mas a lenda persistia. Quando a terra tremia, nalgumas poucas áreas ainda em acomodação, estes pobres seres alegavam que a Rainha, se existisse, devia ser tão grande que, quem sabe, não estivessem caminhando sobre as costas dela. Talvez o próprio continente não fosse mais do que a concha pedregosa do Leviatã alienígena. Ou o planeta. Mesmo entre espécies tão evoluídas, a superstição era uma mácula que levaria ainda algum tempo para desaparecer.

Nas idades primevas, olhavam para a galáxia espiralada visível no seu céu noturno e enxergam o maior caracol de todos, aquele que criara o universo e que criara todas as espécies evoluídas exatamente à sua imagem.

Se era verdade ou não, as Matriarcas não diziam.

Tudo que vinha delas eram ordens.

E era para isso que a Mãe estava ali naquele dia. Para receber uma ordem. Ela fora selecionada para um mundo. Ela aprenderia com as Matriarcas e, anos depois, já uma reprodutora autossuficiente de sua própria espécie, seria enviada pelo portal, como tantas antes dela.

Um mundo só para ela. Uma grande responsabilidade.

E a Mãe aceitou.


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