CAPÍTULO 3

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Havia tantas pessoas na festa de boas vindas que Alessandra desconfiou, e depois constatou, que a vizinha não havia convidado apenas as pessoas da rua. Para começar, havia uma boa quantidade de caminhoneiros e esposas de caminhoneiros. Isso porque Márcia, a vizinha camarada, fora caminhoneira e pau-pra-toda-obra até uns vinte e poucos anos atrás, quando conheceu Orlando, seu atual e único marido, que na época era mecânico e tinha sua oficina especializada em suspensão de pesos pesados. Foi assim que se conheceram.

_Ele era a coisa mais fofa – dizia Márcia para a roda de mulheres na cozinha, a maioria tomando cerveja. Alessandra tomando refrigerante. Ela não era abstêmia, mas Danilo não gostava que ela bebesse. Ela até tomava uma latinha escondida, e adoraria tomar uma ali, agora, e disputar arrotos com as mulheres, mas não queria deixar o marido chateado. Danilo era tão sensível.

_Seu marido?

_Isso – Márcia continuou, depois de dar o arroto mais forte da rodada. – Só falava gritando, especialmente com os empregados. Tinha um garoto lá, meu Deus. Como ele judiava do rapaz. Mas comigo... Há, há... Ele perdia a postura. Falava baixo e, às vezes, não sabia onde enfiar a cara, especialmente quando eu dava uma bronca. E olha que eu dava, e ele merecia mesmo. Vocês sabem como é mecânico. Ele dizia que o serviço ia ficar pronto em três dias, aí eu ia lá depois de três dias, e ele dizia que ia levar mais algum tempo porque apareceu não-sei-o-quê e eles desmontaram e acharam alguma coisa que precisava ser testada, então montaram novamente... Bom, aí eu falei pra ele, e na frente de todo mundo, que ele estava enrolando com meu possante só pra ganhar tempo, pra ver se conseguia reunir coragem para me convidar pra sair.

_Você falou isso na frente de todo mundo da oficina? – perguntou uma mulher quarentona toda rechonchuda com umas unhas enormes pintadas de vermelho e umas bochechas rosadas de Mamãe Noel.

_Ela falou – confirmou um homem que passava por trás dela. Ele tinha acabado de pegar umas três latas na geladeira e estava levando para a sala. O homem tinha barba, boné, bochechas, barriga, tudo e mais um pouco para não deixar dúvida de que era um caminhoneiro; que passava a vida sentado, comendo e dirigindo. – O Orlando arranjava uma menininha aqui, outra lá, como todo mundo, mas quando a Márcia Tunada, como a gente a chamava pelas costas (ele enfatizou a palavra "costas", e houve algumas risadinhas. Todos entenderam que estava se referindo ao popozão.) chegou na área, o homem mudou. Começou a abotoar a camisa e pentear o cabelo. Usava perfume. E pediu pros garotos da oficina tratarem ele de "senhor" quando ela estivesse presente.

_Dessa eu não sabia – comentou Márcia.

_Tem muita coisa que você não sabe – falou o caminhoneiro de boné.

_Porque vocês falavam pelas minhas costas – ela lembrou, e deu umas palmadas na própria poupança, o que gerou mais alguns risos divertidos.

_Você era mesmo um estouro – concordou o homem de boné. – Eu me lembro. Todo mundo ficava de olho em você. Até eu. Mas no final, quem te pegou foi o Orlando.

Alessandra participava da roda, ria algumas vezes, e tomava seu refrigerante. Tudo que ela queria era voltar logo pra casa, pra terminar de arrumar as coisas e iniciar sua limpeza minuciosa de cada canto de cada cômodo. Alguém encostou uma coisa gelada no seu braço e ela segurou um grito. Qualquer coisa estranha que encostava nela lhe causava medo. Era dona Laíza, a outra vizinha aposentada de duas casas à esquerda, se não estava enganada (Alessandra já estava concluindo que, fora ela e o marido, apenas aposentados moravam naquela rua), oferecendo a ela uma lata de cerveja gelada.

_Você não bebe?

_Meu marido não deixa – ela explicou.

_Pois é. O meu também não! – A senhora tomou um longo gole em sua própria lata e depois fez um estalo com os lábios, de prazer! – Se deixar seu marido mandar em você, vai acabar virando uma empregada doméstica pra vida toda. Há quanto tempo vocês são casados?

_Uns três anos, mais ou menos. – Alessandra ficou pensando na acusação. Empregada doméstica. Caía nela como uma luva. Mas Danilo não queria que ela trabalhasse. Sempre deixou claro que queria uma esposa e mãe dedicada, e que acreditava que ela seria a pessoa certa. De sua parte, Alessandra não poderia escolher marido melhor. Danilo era tão paciente com ela que, às vezes, chegava a dar raiva.

_Três anos? Ora, vocês ainda são crianças em matéria de casamento. Mas ouça o que eu te digo, menina. Se deixar que ele te comande no começo, vai ser assim sempre, e quando você acordar pra realidade, vai perceber que passa o dia todo trocando fralda e limpando a casa.

Dona Laíza acertara de novo. Alessandra estava doida para voltar à faxina, mas não era por causa do marido. Numa casa limpa, organizada, dedetizada, aquelas coisas tinham menos possibilidade de aparecer.

_Mas e os filhos? – Dessa vez foi Márcia Tunada quem perguntou. – Vocês ainda não querem? Poxa vida! Eu e o Orlando, nos primeiros seis anos de casados, tivemos cinco filhos!

_O primeiro não nasceu antes do casamento? – perguntou o caminhoneiro, amigo dos tempos de estrada. – Ou minha memória está me enganando?

_Sua memória está boa até demais – Márcia ralhou, puxando a orelha do homem, só de brincadeira, sem fazer força de verdade.

_Eu até queria – Alessandra comentou, meio sem graça, tentando se engajar na conversa –, mas ele diz que não é a hora. Está esperando crescer um pouco mais no trabalho, para conseguir um salário melhor e podermos dar uma educação adequada. Ele se preocupa com esses detalhes.

_Parece um marido maravilhoso – falou uma das mulheres na roda, uma morena alta que ficara em segundo lugar no concurso de arrotos.

_Ele é sim. Meu Danilinho é um doce.

_E onde ele trabalha?

_Num Centro de Distribuição.

_Centro de Distribuição de quê? – perguntou outra.

Alessandra olhou para ela. Mas para que tantas perguntas?

_Não sei. Nunca perguntei muita coisa sobre o trabalho dele.

_Outro erro gravíssimo, minha menina – falou dona Laíza. – Gravíssimo! Você precisa saber onde seu marido está, o que ele está fazendo, e, principalmente, com quem ele está fazendo.

_Danilo é de confiança! – Alessandra estava tranquila quanto a isso. – Ele não tem segredos comigo – ela sorriu. – E com certeza nunca me trairia.

_Mesmo? – dona Laíza provocou.

_A Sueli também nunca trairia o marido. – Dessa vez foi a morena alta que falou, cutucando a amiga. – Não é, Sue?

Sueli, uma das mais jovens no grupo, corou como um tomate e olhou para trás, para ter certeza de que o caminhoneiro havia saído da cozinha, e que nenhum homem escutara o comentário.

_Não fale uma coisa dessas – ela pediu, baixinho. – Você fica inventado histórias com o meu nome. – As mulheres caíram numa gargalhada gostosa.

Os homens, acompanhando da sala, tentavam imaginar sobre o que as mulheres estavam conversando. Danilo estava entre eles, quase um igual, mas diferente. Não era antissocial, mas também não gostava de barulho, e tinha pouca paciência com festas cheias de gente como aquela. Felizmente, ele sabia disfarçar.

Depois da festa, a senhora Aguiar ainda encontrou tempo para ajudar Alessandra com algumas caixas que faltavam ser abertas. Fez isso com muito gosto e muita boa vontade – especialmente porque deixou toda a bagunça da festa para Orlando arrumar.

Durante toda a confraternização, e durante o tempo que passaram juntas na casa de Alessandra e Danilo, arrumando a mudança, e mesmo nos dias que se seguiram, em nenhum momento Alessandra contou à senhora Aguiar o seu pequeno segredo. Aquilo que a assustava tanto a ponto de torna-la paranoica por limpeza, e que já lhe causara os piores pesadelos que sua imaginação fértil fora capaz de criar.

Quatro semanas depois, ela e o marido viram como isso tinha sido um grande erro.


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