Havia algumas caixas ainda por abrir, mas estavam bem adiantados. Poderiam ter organizado mais rápido se não tivessem perdido algumas horas com a festa de boas vindas organizada pela vizinha do lado.
Alessandra e Danilo não eram absolutamente avessos a festas. Gostavam de se divertir e confraternizar como qualquer pessoa normal, mas havia certos preparativos para a casa nova que, especialmente para ela, eram mais do que simples formalidade. Danilo evitava usar a palavra "doença", mas ela sabia que ele pensava isso.
Alessandra era uma mulher magra, pequena e enérgica. Com seu um metro e quarenta, rosto fino e cabelo escuro levemente cacheado até a altura dos ombros, parecia uma bonequinha delicada, daquelas que ficam guardadas em mostruários de vidro. Como dito, não tinha nada contra festas. Da mesma forma, também não tinha nada especificamente contra flores, por exemplo. Mesmo assim, seu primeiro cuidado com a casa nova foi se livrar de todos os vasos que a antiga moradora havia deixado. Assim como remover todos os resquícios de limo dos cantos da casa e nos espaços onde a mulher colocava suas plantas.
_Você não gosta de plantas, querida? – sua nova vizinha, Márcia Aguiar, perguntou, em tom reprovador, enquanto a ajudava com as caixas de porcelana. Era uma senhora de cinquenta e poucos anos, com cabelo branco curto e um quadril tão largo que poderia ser dividido para duas mulheres.
_Não tenho nada contra – Alessandra respondeu, subitamente cabisbaixa. – Só não gosto do que elas atraem.
Danilo, que estava ao lado, fez um gesto negativo para a senhora Aguiar, indicando que era melhor não insistir no assunto, ao que ela obedeceu, embora de um jeito meio desconfiado. Se ela soubesse, Danilo pensou.
Danilo fazia o tipo marido saradão, magro e sem barriga. Embora não fizesse musculação nem pegasse peso no trabalho, tinha o corpo bem torneado. Era alto, mas não tanto. Era bonito, mas não tanto. O tipo do cara que passa despercebido numa multidão.
A casa não tinha jardim nem gramado. Na verdade, não havia trecho do solo que não estivesse coberto por cimento. Se tivesse, Danilo não tinha dúvidas de que a esposa teria cimentado tudo, e, só precaução, ainda teria semeado sal em todo o terreno.
Danilo sabia disso porque, numa das primeiras casas em que haviam morado, ele teve de pagar uma multa à prefeitura por Alessandra ter coberto toda a calçada, originalmente gramada e com pedrinhas brancas no lugar onde o pneu deveria passar, com cimento duro e impermeável.
Mas a festa havia passado. A senhora Aguiar ajudou um pouco, conversou um pouco mais, e foi embora. Com a casa trancada e sem curiosos para criticá-la, Alessandra juntou seu kit inseparável, que já estava no balcão embaixo da pia da cozinha, e começou a preparar sua receita especial. Desatarraxou um pote transparente e dele retirou, com uma colher medidora, 20 gramas de um pó azul cobalto. O rótulo dizia "sulfato de cobre". Ela misturou a um litro de água e despejou numa garrafinha equipada com borrifador. Com a arma carregada, Alessandra revisitou todos os cômodos da casa, todos os cantos que havia memorizado para esta futura tarefa enquanto conversava, distraída, com Danilo e com a vizinha.
O indicado seria aplicar o produto apenas em plantas que pudessem ser alvo da praga, como alfaces e orquídeas, mas Alessandra, que fazia questão de não manter nenhuma planta em casa, o usava em todos os cantos, nas molduras das portas e janelas, qualquer lugar por onde aquelas pragas pudessem entrar.
Parecia tudo limpo, tudo certo. Mas ela sabia, tinha certeza mesmo de que, cedo ou tarde, elas apareceriam. Aquelas pestes sempre apareciam.
E realmente...
Nos primeiros três dias, nada aconteceu.
Mas no quarto dia, quando ela estava tomando banho, de noite, seu marido ouviu um grito e caminhou até o banheiro. Não correu, porque já sabia o que ia encontrar. Ele abriu a porta. Alessandra estava enrolada na toalha, encostada à parede, paralisada de medo. Olhou para ele e apontou para a parede oposta com um dedo acusador. O dedo tremia. Danilo olhou e não teve dificuldade em localizar a causa de tudo escorregando pelo azulejo branco, deixando atrás de si um rastro de limo.
Ali estava ela, a primeira lesma da casa nova.
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GULOSEIMAS
Science FictionVocê tem nojo de lesmas? Alessandra tem tanto nojo, um pavor patológico, resultado de um trauma de infância, que acredita que essas criaturas inofensivas a perseguem de propósito. Família, marido e amigos já tentaram convencê-la de que isso não fari...