Quase um mês havia se passado, e os dois foram convidados para um jantar na casa dos vizinhos.
Os Aguiar eram um simpático e conversador casal de aposentados, e adoravam organizar festas. Tudo de que precisavam era um bom motivo. Quando não havia um, eles o inventavam. A chegada de vizinhos novos fora uma ocasião perfeitamente justificável, assim como era, agora, exibir aos mesmos vizinhos sua sofisticação gastronômica.
_Vinho branco ou tinto – falou o senhor Aguiar. – Podem escolher. Qualquer um deles combina com o prato de entrada.
A mesa estava posta com as duas garrafas de vinho, uma taça vazia para cada um e uma cheia até a metade de água. Havia um cestinho com pedaços de pão, e também uns garfos parecidos com alicate que Alessandra nunca tinha visto.
Ela teve um mau pressentimento.
_Tenho certeza que vocês também vão gostar. – falou o velho.
Orlando Aguiar era magro e alto. Tinha um metro e noventa e dois, um gigante para a pequena Alessandra, e mesmo para a esposa. Sentado, quase não se percebia, a não ser que se comparasse a altura dele com a de Danilo, do outro lado da mesa. Seus cabelos eram curtos, brancos e repicados, exatamente como os da esposa. O rosto era vermelho, pelo sol e pela cerveja.
Márcia Aguiar reapareceu com uma bandeja de inox. Danilo teve de puxar sua cadeira para que o quadril avantajado coubesse entre ele e a cadeira ao lado.
_Nós simplesmente amamos! – ela falou, enquanto depositava a bandeja sobre a mesa. Era uma daquelas peças chiques, com uma proteção em forma de cuba.
Alessandra começou a sentir medo. Uma espécie de pressentimento seu que nunca havia falhado. Ela olhou para a tampa espelhada da bandeja, e a bandeja olhou de volta, confirmando a ameaça.
A senhora Aguiar retirou a proteção da bandeja, e Alessandra levou as duas mãos à boca. Aquilo não era uma refeição, era o Inferno.
_Escargot! – anunciou a senhora Aguiar, como quem anuncia uma celebridade.
Sobre a bandeja de prata decorada com folhas de louro e fatias de limão havia uma dúzia de conchas espiraladas cor de terra, todas dispostas com a abertura para cima, como cumbucas de feijoada em miniatura. Dentro delas, uma massa verde que parecia gelatina, mas que não era nada disso.
_Vocês precisam provar estas guloseimas – concordou o senhor Aguiar. – Custam uma fortuna, mas valem a pena.
Alessandra afastou-se com repulsa, arrastando a cadeira e arranhando o chão. Depois se levantou e afastou-se mais. A cadeira de madeira de qualidade foi ao chão com grande barulho e assustou o senhor e a senhora Aguiar, que olharam primeiro para ela, depois para o marido, e de novo para ela.
_Algum problema, querida? – Márcia perguntou, preocupada.
Ela continuava com as duas mãos na boca, segurando a ânsia de vômito. Alessandra correu para fora da cozinha, mas parou no caminho. Lá fora, no corredor interno da casa, ela olhou para um lado e pro outro, desesperada, depois olhou para seu marido.
_Por favor! – ele falou aos hóspedes – O banheiro!
A senhora Aguiar ficou olhando para ele por um tempo, como se não entendesse. Depois pareceu acordar de um transe e falou:
_Ah! Sim, claro! Desculpe. É por ali, meu bem – ela indicou a direita. – É a última porta.
Alessandra correu disparada, trancou-se no banheiro, chegou ao lavatório, e vomitou até as tripas.
Para sua infelicidade, ela já havia visto como esses bichos eram quando vivos. Só porque não queria, acabou vendo um rápido trecho de um documentário enquanto seu pai trocava de canal. Eram como os caramujos de jardim, só que maiores e mais espalhafatosos. Ao longo da barriga escorregadia havia uma espécie de saia mucosa que não parava quieta enquanto se moviam. E moviam-se muito rápido, apesar da ideia que todos tinham. A imagem da câmera dava um close no animal em movimento, e ele parecia em disparada, escorregando numa superfície irregular como se estivesse num tobogã liso e inclinado.
Alguns anos atrás, para ela não fazia diferença a quantos, algum francês rico e maluco não tinha mais o que fazer e, passeando pelo campo, viu um caramujo que também passeava por ali, e decidiu pegá-lo (pensamento por si só suficientemente repugnante e doentio) e chupá-lo como se fosse um sorvete. O que uma pessoa tem na cabeça para fazer uma coisa dessas? O francês não morreu. Ele achou que o gosto não era ruim, e pensou que ficaria melhor com alguns temperos. Passou então a catar lesmas por aí e a prepara-las para si e para seus amigos podres de rico. A coisa era nojenta, mas acabou fazendo sucesso entre as almas desocupadas e entediadas.
Em seus mais antigos pesadelos, a pequena Alessandra estava numa floresta pré-histórica, à noite e completamente perdida, e fugia de um escargot enorme que queria chupar a sua cabeça. Na puberdade, ela estava nua, e era jogada pelas amigas numa piscina cheia de escargots. Quem conseguiria se imaginar nadando nua numa piscina de lesmas com conchas? Pois Alessandra não apenas imaginou, como viu e sentiu a si mesma em tal desgraça. Seu corpo cercado por uma massa gelatinosa e gosmenta que se movia, escorrendo em torno dela.
Na cozinha, Danilo levantou-se e recolocou a cadeira caída no lugar, desculpando-se. Depois sentou novamente e explicou ao confuso casal o que havia acabado de acontecer.
_Santo Deus!
Agora foi a senhora Aguiar quem levou as mãos à boca.
_Mas eu nem podia imaginar. Oh, a coitadinha! Se eu soubesse, juro que nunca, nunca mesmo...
_A senhora não tinha como saber. Na verdade, ela não gosta de falar nisso.
Danilo já havia explicado como estava acostumado a ouvir o grito – aquele grito característico que já dizia tudo. E quando o ouvia, ele sabia o que a esposa tinha acabado de encontrar, fosse na cozinha, no banheiro ou até na sala.
_Mas quem poderia imaginar? – O senhor Aguiar falou. – Ter medo de umas coisinhas inofensivas. – E, dizendo isso, enfiou o garfo dentro de uma das conchas e retirou uma massa cinza e verde que parecia uma lesma derretida, e que era isso mesmo. Ele enfiou o talher na boca e mastigou a iguaria devagar, apreciando o sabor dos condimentos.
Danilo assistiu a cena sorrindo e concordando. Olhava para o senhor Aguiar mastigando e engolindo o conteúdo de uma conchinha atrás da outra.
_Simplesmente delicioso! – o velho Orlando Aguiar falou.
Em sua mente, Danilo se imaginava matando aquele velho asqueroso com um martelo de quebrar nozes ou com um picador de gelo. Seria interessante enfiar um canudo de metal na cabeça quebrada dele e sugar o conteúdo do seu cérebro do mesmo jeito que ele sugava os pobres caramujos.
Gostaria de matar os dois, mas ainda não podia.
Servir escargot para Alessandra era uma coisa. Mas comer escargot na frente dele, aquilo era um erro. Algo que ele não esqueceria tão cedo.
Afinal, é como dizem: quem mexe com um, mexe com todos.
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GULOSEIMAS
Fiksi IlmiahVocê tem nojo de lesmas? Alessandra tem tanto nojo, um pavor patológico, resultado de um trauma de infância, que acredita que essas criaturas inofensivas a perseguem de propósito. Família, marido e amigos já tentaram convencê-la de que isso não fari...