Eu sempre me considerei uma garota de sorte. Meus pais eram economicamente e profissionalmente bem sucedidos, amavam e respeitavam um ao outro, sempre fizeram de tudo para me ver feliz. Eu tinha a irmãzinha mais amada do mundo, que me idolatrava e que me fazia rir quando ninguém mais conseguia.
Tinha boas notas. Era inteligente, esforçada, gostava de estudar. Tinha a Aisha, minha irmã de outra mãe que sempre esteve comigo. Sabia que eu era bonita, e eu gostava da atenção que recebia do sexo masculino.
E pra completar, eu tinha o Rafael. Nós éramos amigos desde sempre, pois nossos pais eram grandes amigos. Passávamos as férias juntos em minha casa na praia, acampávamos em seu sítio, brincávamos todas as tardes, aprontávamos e ríamos juntos até a exaustão. Fomos grandes amigos do berço até aquela idade boba em que meninos odeiam as meninas e vice versa.
Mas é claro que ele voltou para minha vida. Estávamos terminando o ensino fundamental e ele rematriculara-se em meu colégio. E, de repente, ele não era mais o Rafa meu amigo de infância, ele era O Rafael Marques. Obviamente, retomamos a amizade, mas não era mais como antes.
Foi com ele meu primeiro beijo, e relembrando tudo o que nos levou até ali, era óbvio que já sentíamos algo um pelo outro, mas com nossos 14 anos, não admitiríamos. Lembro que na semana que se seguiu ao meu primeiro beijo, eu não conseguia olhar Rafael nos olhos de tanta vergonha. Mas superamos a fase da vergonha e fomos direto para a fase em que nos beijávamos sem compromisso.
Foi uma fase engraçada. O ciúmes de vê-lo beijando outras me corroía por dentro e eu gosto de pensar que ele compartilhava de tal sensação ao me ver com outros garotos. Brigávamos feito loucos, a grande maioria das vezes motivados por ciúmes, mas sempre terminávamos juntos. Deve ter sido a época em que ganhei mais inimizades. Odiava todas as meninas que davam em cima dele, e eu sabia ser maldosa, fazendo questão de beijá-lo na frente delas. Foi uma época de implicações,de discussões tolas, de negar sentimentos, de raiva incontrolada, de gritar um com o outro e encerrar as brigas com beijos cheios de paixão.
Como tinha que ser, declaramos nosso amor um pelo outro pela primeira vez após uma briga. Eu faria uma grande viagem no dia seguinte e ouvir aquelas três palavras foi mágico. Pouco depois disso, começamos a namorar.
Era comum que eu ouvisse de outras garotas que eu tinha muita sorte em ter o Rafa como namorado. Elas apontavam como ele era lindo, tocava em uma banda de rock, popular e engraçado. Eu concordava, sabendo que minha sorte ia muito além daqueles motivos.
Não era um namorinho adolescente. Claro, éramos adolescentes, às vezes agíamos como adolescentes. Mas o nosso amor, ah, o nosso amor sempre foi maduro. Eu era apaixonada pelo Rafa de uma maneira que muitas pessoas nunca se apaixonam na vida. Nós éramos amigos, parceiros, companheiros.
Ele me fazia bem. Melhor do que eu jamais tinha sido. Acho que nos apaixonamos sem saber porquê. Comigo foi assim, pelo menos. A gente não escolhe quem a gente ama, mas se eu pudesse, eu escolheria o Rafa de novo, de novo e de novo. Quando brigávamos, a reconciliação era como subir para a superfície depois de minutos sem ar.
Não era fácil, é claro que não. Éramos diferentes, muito diferentes. Sabe aquela música Eduardo e Monica? Bem, poderia facilmente se chamar Verena e Rafael. Ele odiava estudar, não pensava em fazer faculdade, não queria sair de Abaré, tocava em uma banda de rock, apesar de amar sertanejo, só assistia filmes dublados, não conhecia Drummond ou Neruda. Eu era metida a nerd, tinha orgulho de apenas apresentar médias acima de 9 no meu boletim, não via a hora de sair de Abaré, era envolvida com causas sociais e políticas, amava poesia, fazia maratonas de filmes franceses.
Aquele clichê de que os opostos se atraem talvez fosse verdade. Não importa muito, na verdade. O que importa é que éramos loucos um pelo outro e que ele sempre esteve ali por mim. Mesmo quando eu não merecia.
Eu tinha quase 16 anos quando descobri minha doença. Um tumor, muito provavelmente benigno, ao redor do nervo óptico. Foi a primeira vez que questionei minha sorte.
Eu dei risada quando o médico me disse que eu tinha um tumor talvez inoperável na cabeça. Ri porque era absurdo. Eu era Verena Macchiato, afinal de contas. Saudável, linda, inteligente... Eu não poderia estar doente, poderia?
Lembro de olhar de canto de olho pro meu pai, que encarava meus exames preocupado. Foi aí que eu percebi que o médico estava falando sério. Meu pai era um ortopedista conhecido na região, formado por uma das melhores escolas de Medicina do país. E então eu chorei.
Eu não queria acreditar. Tinha procurado um neurologista por uma simples dor de cabeça e visão embaçada. Agora eu corria risco de ficar cega. Risco de morrer.
Meu pai imediatamente começou a fazer ligações. Falou com neurologistas do Brasil inteiro, alguns estrangeiros. Usou seus contatos, seus professores de faculdade, sua influência nos hospitais da região. Chegamos por fim à doutora Carol, neurocirurgiã paulistana, que tinha feito especialidade em Harvard. Ela era a melhor e garantia que podia fazer a tal cirurgia.
Sim, eu ainda corria o risco de perder a visão, mas as chances de sobrevivência agora eram muito grandes. Eu deveria ter ficado aliviada, mas ainda assim,não fiquei. Foram semanas de puro medo. Rafael estava em São Paulo, prestes a assinar o contrato com uma grande gravadora. Ele me ligava constantemente, me mandava mensagens e eu desconversava.
Eu o amava. Muito. E o conhecia melhor que ninguém. Sabia que a partir do momento em que contasse tudo o que estava acontecendo ele largaria a banda, largaria o contrato, largaria tudo para me apoiar. Porque ele era meu namorado, meu Rafa, a pessoa com o maior coração do mundo. E como eu poderia permitir que ele fizesse isso? Eu nunca me perdoaria.
Assim, prolonguei ao máximo nosso término. Eu odiava mentir pra ele, e dizer que estava tudo bem quando tudo estava indo ladeira abaixo doía quase que fisicamente. Fui passar um tempo com meus avós para evitar as mentiras, pois ele sabia que eu estava mentindo e isso doía nele também.
Na última noite daquele ano, relembramos nossos momentos favoritos juntos e fizemos sexo. Eu observei atentamente cada movimento seu, guardei cada toque, cada sensação... No dia seguinte, eu lhe disse que não o amava mais. Ele acreditou rápido demais. Acho que ele nunca teve real noção de quão apaixonada eu era por ele, pois, se tivesse, saberia que um sentimento desse tipo não morria de um dia pro outro.
Na semana que se seguiu ao nosso término, Lucas veio até minha casa perguntar o que estava acontecendo. Disse que o Rafa estava péssimo e que ele não entendia porque tínhamos terminado. Aisha fez a mesma coisa. Todos os dias. Até que por fim contei-lhe sobre meu tumor. Eu deveria saber que ela iria diretamente para o Rafa contar tudo.
Até hoje agradeço-lhe por isso.
Sim, no momento eu fiquei puta. Muito brava. Xinguei o Rafael, expulsei-lhe de minha casa. Ele ficou ali até o sol raiar. Davi me ligara dizendo que o Rafa tinha saído da banda e que eu estava sendo estúpida. Quando o dia por fim apareceu, eu finalmente me permiti ser egoísta e aceitei o Rafa de volta para minha vida.
Ainda bem.
Sem ele, todo o processo teria sido ainda mais difícil. Ele foi meu ponto de apoio. Foi ali que eu tive a certeza de que estaríamos prontos para enfrentar juntos qualquer obstáculo que a vida impusesse e que nunca mais nos separaríamos.
Bem, hoje eu sei que não foi bem assim. Nós crescemos, a vida aconteceu. Brigamos, nos magoamos, nos decepcionamos, traímos a confiança um do outro. Mas afinal de contas, quando finalmente ele me pediu em casamento, mais de 10 anos depois daquele evento em que eu permiti que ele ficasse ao meu lado durante toda minha doença, eu soube que para sempre seria ele.Sempre tinha sido.
Até porque, eu me permiti ser muito egoísta mais uma vez no nosso relacionamento. No dia do casamento dele com a Fabi. Mas essa é outra história.
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VERENA - concluída
Teen FictionVerena e Rafael são amigos desde o berço.E essa é a história de como eles passaram de melhores amigos inseparáveis a algo a mais. Algo grandioso. Algo que algumas pessoas passam a vida inteira procurando. Juntos, eles descobriram a raiv...