31. Pós-operatório

25 2 0
                                    

Tempo. No final, tudo é sobre o tempo. Com tanto poder, é de se surpreender que seja uma medida tão imprecisa, relativa e volátil.

Quando éramos crianças, eu e Vê costumávamos passar tardes e mais tardes brincando na piscina. Achávamos que estávamos ali há poucos minutos, não podíamos crer que o sol estava se pondo tão rapidamente. Horas de diversão transformavam-se em minutos.

Por outro lado, os 50 minutos das aulas de física arrastavam-se sem fim. Os ponteiros do relógio ficavam preguiçosos, recusando-se a trabalhar a meu favor.

E foi na sala de espera do hospital que eu tive real noção da efemeridade e relatividade do tempo.

Verena entrou na sala de cirurgia em uma terça-feira às 8h da manhã. A Dra. Carol havia dito que a cirurgia duraria cerca de seis horas. Seis horas. Seis horas para decidir o futuro de uma menina de 17 anos, de sua família, de seus amigos e de seu namorado. 

É engraçado que essas seis horas passaram voando. Hoje, tantos anos depois, eu nem lembro delas direito. Lembro de estar sentado ao lado dos pais de Vê e de minha mãe na sala de espera do hospital. Lembro da apreensão do tio Roberto de estar naquela situação. Ele, cirurgião, longe da sala de cirurgia. Sua filha sendo operada por outro par de mãos. Ele, ali, como todos nós, apenas esperando, sem poder fazer nada. 

Sim, aquelas seis horas passaram voando. Quando o relógio bateu 14h da tarde, olhei para a porta, esperando ver a Dra. Carol com um sorriso no rosto. Mas ela não apareceu. E assim a demora começou. Algo não estava certo. 

O relógio arrastou-se até as 15h e tio Roberto começou a ficar inquieto também. Pouco tempo depois, uma médica residente veio nos informar que Verena estava estável, mas que o tumor estava mais próximo ao nervo óptico do que o previsto e que a Dra. Carol estava fazendo todo o possível. 

A avó de Verena chegou com um terço. Sentou-se ao lado de tia Flávia e rezou não sei quantas vezes. Provavelmente vezes demais, pois o tempo não passava. O tempo não passava e minha cabeça não parava de pensar em um milhão de possibilidades do que estaria se passando com Verena em uma sala a poucos metros de mim. Ficou impossível ficar parado. Andava de um lado para o outro, sendo seguido pelo olhar apreensivo de minha mãe. 

Eu sei de cinco momentos em minha vida em que o tempo congelou. Em quatro deles Verena estava presente Um deles foi quando Verena interrompeu meu casamento com Fabiana. Outro enquanto esperava a resposta  da Vê a meu pedido de casamento. Também quando o álbum da minha banda ganhou o Grammy Latino. 

Os outros dois aconteceram naquele dia. Às 18h daquela terça feira, quatro horas depois do previsto, Dra. Carol nos encontrou na sala de espera. Do momento em que a vi ao momento em que ela abriu um sorriso, o tempo congelou. Quando ela sorriu e confirmou que Verena estava se recuperando da anestesia, que 95% do tumor havia sido removido e que o restante iria embora com a radioterapia, uma descarga de adrenalina percorreu meu corpo de maneira absurda, de tal forma que nunca mais se repetiu, nem quando eu toquei em um Maracanã para 100 mil pessoas tantos anos depois. Foi como se minha vida tivesse começado novamente. Eu não consigo imaginar o que teria sido de mim se Dra. Carol não tivesse aberto um sorriso. Eu nunca ousei imaginar, para ser sincero. 

- A Verena está bem. - ela nos tranquilizou mais uma vez. - No entanto, foi uma cirurgia complicada. A massa tumoral estava maior do que a última tomografia havia nos mostrado e também mais próxima do quiasma óptico. Eu fiz o meu melhor, mas o tumor estava realmente muito colado no nervo. Alguma lesão sempre pode ter ocorrido. Dr. Roberto, o senhor é médico e sabe que nunca podemos dar 100% de certeza sobre nada... Verena tem grandes chances de não ter sua visão afetada, mas não é 100%. Precisamos esperar que ela acorde. Quero conversar com vocês sobre o tratamento que a Verena precisa...

Ela continuou falando mas eu não me importei muito. Verena estava bem e era o que importava. Mas é claro que aquela chance dela ficar cega... Aquela chance me preocupava. Como Verena enfrentaria a situação caso sua visão tivesse sido prejudicada? Como eu enfrentaria? 

Os pais dela seguiram para seu quarto, esperando que ela acordasse. Poderia demorar algumas horas ainda e recomendaram que eu fosse para casa descansar um pouco. Eu os ignorei, é claro. Fiquei ali, esperando que eles me chamassem quando ela acordasse. Quem me chamou foi uma enfermeira, meia hora depois. 

O tempo congelou novamente quando entrei naquele quarto. Seus pais estavam conversando entre si em um canto, aos sussurros. Verena estava sentada, olhando fixamente para a parede a sua frente, com um grande curativo na cabeça. Quando eu entrei ela não olhou para mim. Depois do que pareceram anos, ela falou:

- É uma péssima ideia colocar um espelho na parede em frente à cama de uma paciente em pós-cirurgia. Eu estou horrível! 

Gargalhei, correndo a seu encontro, beijando-a com cuidado, mas apaixonadamente. 

- Você nunca esteve mais linda. - eu garanti, sentando em sua cama. 

- Ai, Rafa, eu que faço cirurgia da cabeça e quem fica com a visão alterada é você? - ela revirou os olhos e eu a encarei incrédulo. 

- Eu te amo, sua louca. 

- Eu te amo mais,  lindinho. - ela sorriu. O maior sorriso de toda sua vida. 

VERENA - concluídaOnde histórias criam vida. Descubra agora