1. Trevo de quatro folhas

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Cresci em uma cidadezinha do interior de São Paulo. Grande Abaré tinha pouco mais de quarenta mil habitantes, que se orgulhavam de morar na cidade com mais flores do Brasil.

A história de Abaré confundia-se com a história da cafeicultura paulista. Com o declínio do café , enquanto a maioria das cidades passara a se dedicar à atividade industrial, minha charmosa cidade preferira investir na floricultura. Tinha tudo para dar errado, mas dera certo e há décadas atraía turistas para suas feiras de flores e para suas praças coloridas e perfumadas.

Em uma dessas praças, no meu bairro, passara a infância brincando com Verena, minha vizinha. Nossos pais eram amigos e sempre faziam piadas sobre nossa intimidade. Eu ria, pois via em Verena uma irmã. Uma irmã mais esperta e mais corajosa que eu.

Minha parceira de brincadeiras estava sempre disposta a aventuras e travessuras. Eu era seu parceiro de crime, mas a mentora sempre era Verena. Pregar sustos na babá, escalar árvores altas demais para meu gosto, pedalar até a caixa d'água depois do entardecer... A criatividade de uma criança de seis anos não tem limites.


Tínhamos outros amigos, mas a proximidade de nossas casas e a amizade entre nossos pais fizeram com que Verena e eu passássemos a maior parte de nossos dias juntos.

Em uma tarde de janeiro,  brincávamos na praça sob os olhares cuidadosos de Dona Ana, vó de Verena, que dormia com a boca escancarada em um banco próximo.

-É seu aniversário semana que vem. O que você pediu pros seus pais? 

Ela me olhou, sorriu e jogou os cabelos para trás, largando os trevos de quatro folhas no chão. Tentávamos descobrir quem conseguiria reunir o maior número desses trevos em menos tempo. Antes que eu pudesse reclamar que ela tinha estragado a brincadeira, ela me encarou seriamente, franzindo a testa. Então olhou para baixo, e seus cílios longos faziam sombra em suas bochechas.

-Promete que não vai contar para ninguém?

Larguei meus trevos para estender meu  mindinho, e ela entrelaçou seu dedo com o meu, soltando um pesado suspiro.

-Eu pedi um irmãozinho. E meus pais riram. Sabe por que? Minha mãe tá grávida! Eu pedi um irmãozinho e vou ter um. Ou uma, ainda não sabemos se é menino ou menina.

-E por que você tá chateada? Ter irmão é legal. E olha que eu sou o caçula,hein. Você vai ter alguém pra brincar quando viajar e alguém pra dividir a culpa quando quebrar alguma coisa em casa. E você pediu um!

-Eu sei. Mas agora eu tô com medo. Eu desejei e fui atendida. E se eu tiver um poder especial que faz com que tudo que eu deseje se torne realidade?

-Ia ser irado, Vê! - ela me olhou pasma, e revirando os olhos me deu as costas. Eu nunca conseguia entender aonde ela queria chegar.

Corri para alcançá-la e quando ia pedir que ela me explicasse porque tal poder não era irado, ela cruzou os braços e começou a falar:

-No Natal eu pedi que a Lara Lima sumisse! Eu não gosto dela porque ela disse pro Diego Aranha que eu gosto dele. Mas eu não quero que ela suma! Acho que os pais dela ficariam bem chateados.

-Mas o Natal já foi! Seu pedido não vai se realizar. E você gosta do Diego Aranha? Eca!

-Tem pedido de Natal que vem atrasado, der. E eu não gosto do Diego! E por que eca?

-Ele tem maior chulé. Depois do futebol, quando ele tira a chuteira, ninguém aguenta ficar perto dele.

Ela gargalhou e percebi que seu medo já era passado. Abaixou-se para colher os trevos e mordeu os lábios.

-Acho que deu empate. Nós dois somos ótimos catadores de trevos de quatro folhas. Somos dois sortudos.

-Que empate que nada! Eu ganhei, não vem roubar não.

-É meu aniversário semana que vem, você não pode brigar comigo, ok?

-Todo ano você fala a mesma coisa! - revirei os olhos e ela sorriu, mostrando a janelinha. - Ano que vem, quando você fizer nove anos, não vou mais deixar você usar essa desculpa, não.

-Tá bem, e eu não vou deixar você andar na minha bicicleta nova. Ah, é. Eu pedi uma bicicleta nova de aniversário.

Dona Ana então acordou, e vendo que passava da hora de nos levar para casa, gritou nosso nome, encerrando mais uma das várias conversas malucas que eu tinha com Verena.

Na semana seguinte, comemoramos o aniversário de Verena, e, sim, andei na bicicleta nova dela. Depois que a festa acabou, saímos escondidos e pedalamos até à caixa d'água, a alguns quarteirões de distância. Todo ano fazíamos a mesma coisa, e nossos aniversários eram as únicas noites do ano em que nossos pais não brigavam conosco por isso.

Largamos as bicicletas e subimos as escadas, chegando sem fôlego ao topo da caixa d'água. Dali podíamos ver a cidade inteira, toda iluminada. Verena tirou do bolso dois pedaços de bolo, e me entregou um deles. Mastigava quando ela me disse:

-Acho que vai ser um menino. Meu irmãozinho, sabe.

-E por que você acha isso? - terminei de engolir meu pedaço e olhei para ela, que deu de ombros, mas sorriu.

-Ei, no final de semana meus pais vão pra casa da praia e perguntaram se você não quer ir junto.

-Ah, não posso, Vê. Combinei com o Lucas, vou pro sítio dos tios dele.

-Mas você odeia sítio, Rafael! - ela deu a última mordida em seu pedaço e me encarou.

-Não, eu não odeio. Você odeia.

-Tanto faz. Eu vou pra casa. - ela se levantou e eu segurei seu pulso. Não entendia porque ela estava chateada.

-Eu não sabia que você ia ficar brava. A gente ainda é amigo, mas eu também tenho outros amigos.

-Mas você tem brincado bem mais com eles esses dias, né.

-Você também! Esses dias mesmo foi na casa da Aisha brincar de boneca.

Ela puxou o pulso e dirigiu-se para a escada.

-Tá, vai pro sítio com o Lucas. Acho que vou chamar a Aisha pra ir comigo pra praia.

-Chama, não ligo.

Encaramo-nos por alguns instantes, até ela soltar um suspiro.

-Tchau, Rafa. - e desceu as escadas.

No ano seguinte não voltaríamos a realizar nosso ritual pós-aniversário. Na verdade, eu nem seria convidado para o aniversário de nove anos de Verena, que preferiu comemorar só com suas amigas em uma festa na piscina.

Ficamos alguns anos distantes. Não foi nenhum acontecimento particular, naquele momento ela preferia brincar com meninas e eu, com moleques. Era aquela fase besta em que meninos odeiam meninas. Logo passaria. Verena nunca deixaria de fazer parte da minha vida.

A briga na caixa d'agua após o aniversário de oito anos da minha melhor amiga fora apenas o primeiro acontecimento marcante que viveríamos ali.

Poucos meses depois desse episódio, a mãe de Verena daria luz à Alice.

VERENA - concluídaOnde histórias criam vida. Descubra agora