Verena saiu de fininho do meu quarto quando o sol já tinha nascido. A chuva dera uma trégua e fazia um belo dia lá fora. Tentei dormir, mas não consegui. Desci para o café da manhã e encontrei todos sentados à mesa, inclusive Vê.
- Bom dia, Rafinha! - minha irmã me cumprimentou animada. - Dormiu bem?
Ela tinha um sorriso malicioso no rosto e eu optei por apenas concordar com a cabeça.
-E você, Vê? Tá com uma cara boa! - ela virou-se para Verena, que sorriu apenas.
- Que bom humor, Beatriz. - Mateus resmungou. Ele era muito parecido comigo mas,apesar de mais velho, era ao menos um palmo mais baixo.
Bia sorriu e continuou falando com Verena.-Acho que algum bicho te picou no pescoço, Vê. Tá bem roxo. - ela fez uma careta e Verena ficou vermelha.
Fuzilei Beatriz com o olhar, que se segurava para não rir. Mateus e Juliana logo perceberam o que acontecia.
- Tá bem feio mesmo, Vê. - meu irmão entrou na brincadeira, e Verena jogou os cabelos pra frente.-Que bicho será que foi?
-Nossa, filha. Deixa eu ver... - tia Flávia, pediu, mas Verena recuou.
- Não precisa, mãe. Vou passar uma pomada depois.
- Deve ter sido a hora que você saiu do quarto à noite, Verena. - Alice, inocentemente, comentou, fazendo minha irmã rir sem dó. Mateus olhou para mim, esperando minha reação e nossos pais pareceram não entender o que se passava.
- Talvez, Alice. Não consegui dormir e vim para a sala assistir TV.
-Ah, então foi você que deixou a TV ligada. - minha mãe balançou a cabeça. - E o brigadeiro no fogão também?
Verena concordou com a cabeça rapidamente, colocando um pedaço de bolo na boca para evitar responder mais perguntas.
-Deve ter acontecido algo muito bom para você largar o brigadeiro sem nem ao menos dar uma colherada.
- Bia, posso falar com você? - pedi, me levantando da mesa e encerrando aquele assunto antes que Verena tivesse uma síncope.
Minha irmã sorriu e se levantou, me seguindo até a beira da piscina.
- Que porra foi aquela? - perguntei.
- Eu vi a Verena saindo do seu quarto hoje de manhã, idiota. Sorte que fui eu, e não o tio Roberto, se não vocês estavam mortos.
- Não é o que você pensa...
-Ah, não? Tá bom. Só me digam que usaram camisinha.
- Cala a boca. A gente não transou, retardada. - revirei os olhos.
Ela riu de mim e me abraçou pela cintura.
-Desculpa pelas piadas no café. Mas a cara de vocês fez valer a pena. E sério, fala pra Verena passar uma base naqueles chupões. - ela riu, mas depois ficou séria. - Rafa, você é meu irmão e eu te amo. Mas a Vê também é minha irmãzinha e se você fizer ela sofrer, eu te mato! Juro por Deus!
Levantei as mãos como quem se rende, mas ela não pareceu achar graça.
-Eu tô falando sério, Rafael. Você tá no auge da adolescência, não pensa com a cabeça e sim com os hormônios. Você é galinha, Rafa. Acha que eu não percebi que você tem levado umas meninas pro seu quarto de madrugada recentemente? Eu te encoberto porque sou legal, mas você não pode tratar a Verena assim. Ela gosta de você, eu sei. E você gosta dela também. Então, sei lá, se resolvam.E não faça merda.
- Relaxa, Bia. A gente vai dar um jeito, prometo. - beijei o topo de sua cabeça e ela sorriu. - Mas para de deixar a Verena com vergonha, por favor.
Apesar de minhas palavras, eu não estava muito certo de como fazer aquilo dar certo. Não sabia como Verena se sentia, qual seria o próximo passo, quando seria a próxima briga.
Optei por ignorar todos aqueles questionamentos e curtir o que sobrava do feriado.Eu e Verena passamos o dia trocando olhares e sorrisos, e até conversamos sobre bobagens na piscina, fazendo nossos pais sorrirem. Fora uma viagem inesquecível. Meus pais pareciam felizes novamente e não tinha presenciado sequer uma discussão deles nos últimos quatro dias. Parecia que tudo voltara ao normal.
No dia seguinte, no entanto,já de volta à cidade, os dois começaram uma briga idiota durante a janta. Meu pai reclamou do macarrão e minha mãe começou a chorar, assustando a mim e a minha irmã. Os dois começaram a gritar e eu fiquei aliviado quando a campainha tocou. Para minha surpresa, era Verena.
-Oi, Rafa! Sua mãe esqueceu essa... - ela começou a falar, mas foi interrompida pelos berros dos meus pais.
-Se é tudo tão péssimo assim, por que você não sai de casa? - eu encarei o chão ao ouvir as palavras de minha mãe e Verena parecia não saber o que dizer. Esperava que ela não me perguntasse nada.
Após alguns segundos incômodos nos quais só ouvíamos a discussão e o choro de minha irmã, Verena segurou minha mão.
-Vem. - ela sussurrou, e eu a segui sem pensar. Andamos pelas ruas tranquilas de Grande Abaré em silêncio , ainda de mãos dadas. Caminhamos por algum tempo e eu demorei para perceber aonde estávamos indo.
Quando chegamos na caixa d'água, sorri. Ela subiu na minha frente, e quando cheguei ao topo ela estava encostada na grade, observando a cidade.
- Fazia tanto tempo que eu não vinha aqui.
- Eu também. - abracei-a por trás e ela encostou sua cabeça no meu ombro. Seu cabelo cheirava doce de coco e sua pele era macia. Ficamos naquela posição por um bom tempo e o silêncio entre nós não era incômodo. Eu pensava em minha família e sabia que ela também. Senti uma lágrima escorrer em minha bochecha, e levei minha mão até lá para escondê-la. Mas ela percebeu e virou-se para mim. Seus olhos também estavam marejados e ela abriu um sorriso triste. Enxugou minha lágrima solitária com um beijo e suspirou.
- Eu sinto muito. - seu sussurro seria inaudível se ela não estivesse tão próxima a mim.
- Eu também.
Ela me conhecia tão bem que logo percebeu que eu não queria falar sobre o assunto. Não tinha o que falar. O casamento dos meus pais estava uma merda e ela sabia. Todos sabíamos e mesmo assim nos recusávamos a enxergar a realidade.
- Lembra aquela briga que tivemos aqui depois de um aniversário meu? - ela se sentou e eu a acompanhei. Sorri com a lembrança. - O Lucas é um babaca. Sempre te roubando de mim. - ela fez biquinho e eu ri. Naquela época seria inadmissível imaginar que Verena e Lucas se tornariam tão amigos.
- Acho que esse nosso lance de briga é mais antigo do que pensávamos. - beijei seu nariz e ela concordou com a cabeça.
- A vida sem luta é um mar morto no centro do organismo universal. - ela sussurrou e eu a encarei, confuso. - Machado de Assis, lindinho.
- Cala a boca. - gargalhei. - Sua nerd. Quem cita Machado de Assis?
Verena. Verena citava. A mesma menina que fumava maconha,gastava parte de sua mesada na manicure semanal, dormia nas aulas de física e xingava o caralho à quatro jogando truco citava Machado de Assis e Drummond naturalmente, lia Nietzche, ouvia Chico Buarque e bandas underground inglesas e falava quatro línguas antes mesmo de completar 16 anos. E eu? Bem, eu mandava bem no futebol, trabalhava aos finais de semana na lanchonete do meu tio e, tinha certo talento para música. Eu e Verena nos matriculamos nas aulas de violão aos seis anos mas ela desistiu em poucos meses, enquanto aquela ainda era uma das minha grandes paixões.
Éramos água e óleo. Mas algumas coisas nos aproximavam. Tínhamos o senso de humor muito parecido, gostávamos dos mesmos filmes e programas de TV, estávamos sempre prontos para festar, sempre tínhamos assunto, respeitávamos nossas opiniões que, comumente, divergiam. De alguma forma, éramos a melhor companhia um para o outro.
E assim, ficamos ali, naquele nosso lugar, por horas, até que eu quisesse voltar para casa.
Foi quando eu soube, ou melhor, percebi. Estava apaixonado.
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VERENA - concluída
Fiksi RemajaVerena e Rafael são amigos desde o berço.E essa é a história de como eles passaram de melhores amigos inseparáveis a algo a mais. Algo grandioso. Algo que algumas pessoas passam a vida inteira procurando. Juntos, eles descobriram a raiv...