Cansada da minha vida "perfeita" fui ainda de madrugada para a rodoviária. Levando tudo que achava importante dentro da minha mochila.
Ainda estava com a consciência pesada por ter feito o piloto decolar sem mim. O senhor Michel estava cansado, porém mesmo assim atendeu ao meu chamado e foi me buscar no aeroporto, mas quando estava quase entrando no jatinho percebi que se voltasse para Nova Iorque, que eu acabaria concretizando meus planos de encerrar de vez com a minha vida. Antes de o jatinho decolar, eu pedi que o senhor Michel agisse como se eu realmente tivesse voltado. Eu não queria ninguém atrás de mim e sabia que essa pequena mentira me daria a liberdade de ser uma pessoa comum.
Peguei um táxi e fui para a rodoviária comprar passagens para Bahia. Queria ir para a Chapada Diamantina. Não era tão longe quanto a Julia Roberts tinha ido no filme Comer, Rezar e Amar, mas era suficientemente bonito para mim.
Ao entrar no ônibus fiquei desapontada por não ter conseguido um assento na janela e quando já estava na esperança que o passageiro do banco ao lado não viesse, quase fui atropelada por alguém com a sutileza de um mamute. Ao olhar para o lado vi que minha companhia durante a viagem seria a de um maluco com uma mochila enorme, cabelos na altura dos ombros e uma barba grande. Parecia um mendigo de jaqueta de couro. Respirei fundo e me ajeitei no banco. Ele me pediu desculpas e sorriu. Franzi o cenho ao perceber que por trás daquele monte de pelos, ele era jovem e tinha um sorriso bonito.
Me virei de costas para ele com as pernas encolhidas, já que a senhora sentada a minha frente havia resolvido baixar seu banco talvez numa tentativa inconsciente de esmagar as minhas pernas e como se ser esmagada e ter um cover do Raul Seixas roncando ao meu lado não bastasse, meu estômago resolveu se revirar. Eu já conseguia sentir tudo que havia comido durante a semana vindo compulsivamente na direção errada.
Tentei acordar o cabeludo, mas ele parecia estar morto, então resolvi radicalizar e ainda trincando os dentes puxei seu cabelo. Ele acordou assustado, mas já era tarde demais. Vomitei na jaqueta dele. No primeiro momento pensei que ele me jogaria pela janela e julgando pela velocidade do ônibus, isso não seria nada agradável, mas do contrário do que imaginei, ele se portou como um cavalheiro, tirou uma blusa da mochila e ajudou a me limpar. Então assim que o ônibus parou, nós descemos e eu me sentei na calçada de cabeça baixa e não apenas por vergonha, mas porque minha cabeça não parava de girar.
Ele se sentou ao meu lado, fez um coque no meu cabelo e me deu uma garrafinha de água mineral. Eu bebi quase toda a garrafa de uma só vez! Queria acabar com aquele gosto ruim!
– Na verdade a água era só pra você lavar a boca! Beber muita água agora pode piorar o enjoo.
Eu parei de beber no mesmo instante e sorri ainda sem graça com a situação.
– Obrigada pela dica! – respondi estendendo a mão. – Prazer, Amanda.
– Prazer, James.
– James? Como J. Morrison?
– Não! Apesar da semelhança e do nome, eu sou apenas mais um Silva.
Rimos juntos e ele me ajudou a levantar.
– Eu vou pagar pela jaqueta, não se preocupe – falei ainda envergonhada.
– Está tudo bem. Estou acostumado – respondeu pausadamente.
– Sério? Pessoas vomitam em você o tempo todo?
– Minha irmã fazia isso – disse com um sorriso triste.
– Tadinha! Ela ainda passa mal assim? – perguntei fechando a garrafinha.
– Não! – respondeu sem olhar para mim.
– Que bom! Sinal que ainda tenho esperança – e sorri ainda desconcertada pela situação.
– Ela morreu! – disse sem mover um músculo, apenas suas pálpebras trepidaram com a lembrança.
– Oh!... Me desculpe, eu... Não... – Nem sabia o que dizer.
– Está tudo bem... Isso foi há muito tempo! – e sorriu novamente. Um pequeno e dolorido sorriso.
O motorista nos chamou para entrar, pois o ônibus já estava de saída. Voltamos em silêncio. Eu não sabia o que dizer. Estava ainda mais constrangida que antes.
Ele se virou para a janela e ficou pensativo. Eu podia sentir sua tristeza no ar como se estivéssemos circundados por uma atmosfera diferente do restante das pessoas. Pensei em puxar assunto por umas duas vezes, mas me contive por medo de dizer alguma outra besteira e apesar dele ser completamente diferente de todos os caras que eu já tinha me interessado na vida, eu me sentia conectada a ele de uma forma que não conseguia explicar.
Entre tantos pensamentos confusos e mesmo estando extremamente desconfortável acabei pegando no sono, mas fui despertada por um solavanco seguido de um barulho estridente. James passou por mim indo em direção ao motorista, voltando alguns minutos depois franzindo o cenho numa careta que me dizia que algo ruim tinha acontecido, e até que a minha leitura facial alá Lie To Me não estava muito ruim, pois antes de se sentar ele disse que o motor do ônibus estava com problema, e assim que terminou a frase o motorista anunciou usando as mesmas palavras que ele, acrescentando apenas que o problema seria resolvido pela manhã.
Ouvi gritos e alguns passageiros reclamando. O motorista parecia anestesiado, pois não esboçou nenhuma reação aos protestos.
James então se levantou e batendo palmas chamou a atenção de todos.
– Alguém aí tem um violão?
Após alguns segundos de silêncio, um jovem ruivo com o rosto coberto por sardas levantou um violão cor de canela.
– Então podemos aproveitar a noite fria e fazer uma fogueira lá fora – disse com um meio sorriso.
As pessoas ficaram divididas, mas não hesitaram em segui-lo para fora e eu, é claro, fui a primeira a puxar a fila.
Fizemos um grande círculo no chão e com alguns gravetos secos que as crianças encontraram fizemos uma pequena fogueira.
Fiquei observando as crianças correrem e pularem como se estivessem ligadas em 220 volts. Os pais estavam sempre atentos se os filhos estavam seguros e se não correriam para a estrada. Fiquei pensando no quanto eles pareciam felizes. Vi casais aproveitando a fogueira para se aconchegarem um ao outro enquanto faziam planos para quando chegassem a pousada.
A maioria parecia estar de férias e interagiam entre si como se estivéssemos em uma excursão em que todos se conheciam ha anos.
O ruivinho tocou algumas músicas enquanto um coro desafinado o acompanhava, cada um se sentindo mais profissional que o outro e boa parte da noite foi assim cercada por risos e por novas amizades. E eu me senti livre e feliz, me senti uma pessoa normal.
Assim que a maioria voltou para o ônibus para dormir, vi James pegando o violão do ruivinho e sentando-se no chão de frente para a fogueira. Ele começou a tocar Dust in The wind do Kansas. Uma música no mínimo bem velha, mas muito bonita, tinha que admitir. Me aproximei timidamente e me sentei do lado oposto como se quisesse apenas me aquecer.
Sua voz era rouca e sedutora. Fiquei hipnotizada e somente quando ele terminou de cantar que percebi que estávamos sozinhos.
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O Colecionador de Borboletas
Mystery / ThrillerAmanda é uma modelo de sucesso em Nova York, que se vê perdida num mundo em que muitas garotas sonham em viver. Após ler um livro inspirador, ela decide copiar a personagem principal e foge para a Chapada Diamantina, onde ainda no caminho conhece...