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  O Ramadã se aproximava. Certa manhã, fiquei sabendo que todos da casa
iriam a Sirte. Deram-me um uniforme, disseram-me em qual carro do comboio eu
iria e enfim pude sentir, por alguns segundos, o sol acariciar meu rosto. Fazia
semanas que eu não saía do subsolo. Fiquei contente em poder ver de novo um
pouco do céu. Na chegada à katiba Al-Saadi, Mabruka se aproximou de mim e
disse:
– Você queria ver sua mãe, então vai vê-la.
Meu coração parou. Desde que me levaram, eu não parava de pensar nela nem
por um minuto. Eu sonhava em desaparecer em seus braços. Dia e noite, pensava
no que diria a ela, ensaiava, atropelava as palavras, então retomava minha história
e tentava me tranquilizar, dizendo a mim mesma que ela compreenderia sem que
eu tivesse de entrar em detalhes. Ah, meu Deus! Rever meus pais, meus irmãos,
minha irmãzinha Noura...
O carro parou diante de nosso prédio, todo branco. O trio original – Mabruka,
Salma e Faíza – me acompanhou até a porta de entrada, e subi rapidamente a
escadaria. Mamãe estava me aguardando em nosso apartamento no segundo
andar. Meus irmãos menores estavam na escola. Choramos em um abraço
apertado. Ela me abraçava, me olhava, ria, balançava a cabeça, enxugava as
lágrimas.
– Ah, Soraya! Você partiu meu coração. Conte! Conte!
Eu não podia. Fazia que não com a cabeça e me aconchegava em seu peito.
Então, com delicadeza, ela me disse:
– Faíza me explicou que Kadafi entrou em você... Minha menina! Você é tão
nova para se tornar mulher...
Faíza subiu as escadas. Ouvi sua voz forte:
– Já chega. Desça!
Mamãe se recostou em mim.
– Deixe a minha filha comigo.
A outra já estava ali, com ar severo.
– Que Deus nos ajude – disse mamãe. – O que posso dizer a seus irmãos? Todo
mundo se pergunta onde você está. Digo que você foi à Tunísia visitar a família, ou
a Trípoli com seu pai. Preciso mentir para todos. O que faço, Soraya? O que vai ser
de você?
Faíza me arrancou de seus braços.
– Quando vão trazê-la de volta? – perguntou mamãe aos prantos.
– Um dia.
E partimos para a katiba.
Fathia me aguardava.
– Seu mestre quer você.
Quando entrei em seu quarto cor de areia, onde ele me violara nas semanas
anteriores, encontrei Galina e quatro outras ucranianas. Ela massageava Kadafi, e
as outras estavam sentadas em volta. Aguardei perto da porta, apertada em meu
uniforme, ainda transtornada pela visita a mamãe. Como me enojava aquele
monstro que tomavam por Deus, que fedia a alho e suor e só pensava em trepar.
Quando as enfermeiras partiram, ele ordenou:
– Tira a roupa!
Ah, como eu queria gritar "Desgraçado!" e sair batendo a porta! Mas obedeci,
desesperada.
– Vem, fica em cima de mim. Aprendeu as lições todas? E vê se fecha a boca!
Você andou engordando, não gosto.
No final, ele fez algo que jamais fizera. Levou-me até a jacuzzi, me mandou
segurar nas bordas e urinou em mim.
Eu dividia o quarto com Farida, a mesma garota da primeira estada na katiba.
Ela estava deitada, com náuseas e muito pálida.
– Estou com hepatite – avisou.
– Hepatite? Achei que o Guia tivesse fobia de doenças.
– Sim, mas parece que só das que são transmitidas pelo sexo.
Então como a hepatite é transmitida? Comecei a ficar com medo. Naquela
mesma noite, Kadafi chamou nós duas. Estava nu, impaciente, e de cara foi
dizendo a Farida:
– Vem, vadia.
Pensei em me aproveitar da situação.
– Então posso ir?
Ele cravou aqueles olhos de insano em mim.
– Dança!
Eu disse a mim mesma: Ele beija a menina doente e vai me beijar! E foi
exatamente o que fez, ao dizer que era a vez de Farida dançar.
Ficamos três dias em Sirte. Ele me chamou inúmeras vezes. Podiam ser três,
quatro garotas ao mesmo tempo. Não nos falávamos. A cada uma sua história. E
sua desgraça.
Enfim, havia chegado o Ramadã. Para a minha família, era um período sagrado.
Minha mãe era bastante rigorosa quanto a isso. Não se podia comer do nascer ao
pôr do sol, deviam-se respeitar as orações e, à noite, comíamos coisas deliciosas.
Refletíamos o dia todo, antes de retornar à família. Algumas vezes mamãe chegou
a nos levar ao Marrocos e à Tunísia, para partilhar esse momento com minha avó e
com a dela. Era realmente maravilhoso. Desde os dois anos, eu jamais havia
deixado de observar o Ramadã, nem mesmo imaginado que se pudessem violar
suas regras. E eis que, na noite anterior, aquela em que deveríamos nos preparar
espiritualmente para entrar nesse período especial, fazendo calar os desejos e os
sentidos, Kadafi veio com tudo para cima de mim. Durou horas, e fiquei
mortificada.
– É proibido, é Ramadã! – implorei logo pela manhã.
A não ser para ordens e insultos, ele jamais me dirigia a palavra. Dessa vez, no
entanto, dignou-se a responder, entre grunhidos:
– Só é proibido comer.
Tive um sentimento de blasfêmia.
Ou seja, ele não respeitava nada. Nem mesmo a Deus! Violava todos os seus
mandamentos. Desafiava-os. Desci transtornada para o meu quarto. Precisava
contar para alguém, para Amal ou alguma outra garota. Fiquei realmente em
estado de choque. Mas não encontrava ninguém. Eu era impedida de me aventurar
pelos corredores e pelo labirinto iluminado por neons no subsolo. Meu perímetro
era estritamente limitado: meu quarto, o quarto dele, a cozinha, a cafeteria, às
vezes os salões de festas que ficavam próximos de seu escritório e de sua pequena
academia de ginástica particular. Mais nenhum outro lugar. Ouvi passos e ruídos de
porta vindos do andar de cima e entendi que Amal e outras garotas veriam o Guia.
No dia do Ramadã! Ao encontrá-las na hora da ceia, expressei meu espanto. O que
tínhamos feito era muito grave, não era? Uma explosão de risos se seguiu.
Contanto que ele não gozasse, ele explicou a elas, contanto que não ejaculasse,
aquilo não contava aos olhos de Alá... Arregalei os olhos, o que só fez aumentar as
risadas.
– É o Ramadã à moda de Kadafi – uma delas concluiu.
Ele me fez subir ao seu quarto durante todo o mês do Ramadã. Não importava
a hora do dia ou da noite. Ele fumava, me penetrava e me espancava, urrando. E,
pouco a pouco, eu me permiti comer sem me preocupar com a hora. Para que
respeitar regras em um universo que não tinha nenhum padrão, lei ou lógica? No
fim, acabei me perguntando por que minha mãe fazia tanta questão daquela
história toda de Ramadã.
A vigésima sétima noite, que consideramos a Noite do Destino, celebra o início
da recitação do Corão ao profeta. Muitas vezes, realizam-se grandes
comemorações noturnas, e Kadafi recebia um grande número de convidados de
prestígio nos salões e em uma tenda ali perto. Mabruka nos convocou para que
dispuséssemos bolos e frutas em pratos e os servíssemos. Eu usava um conjunto
esportivo preto com uma listra vermelha nas laterais, e lembro que meus cabelos,
compridos até a cintura, não estavam presos em um coque ou por uma faixa, como
às vezes eu fazia. Os convidados chegaram em peso, e os três grandes salões
ficaram repletos. Havia muitas mulheres africanas de beleza espetacular, homens
engravatados, militares. Eu não reconhecia ninguém. Exceto um! Nuri Mesmari,
diretor-geral do protocolo, com os cabelos e a barbicha estranhamente loiros, um
olho de vidro por trás dos óculos finos. Já o tinha visto na televisão, e era estranho
vê-lo passeando por entre os convidados. Chegou outro homem, Saad al-Fallah,
que parecia conhecer pessoalmente as garotas e entregava a cada uma delas um
envelope com quinhentos dinares. Disseram que para ele não eram mais que uns
trocados. Ao cruzar algumas vezes seu olhar, percebi que ele me notara. Então veio
sorrindo em minha direção.  

No Harém De KadafiOnde histórias criam vida. Descubra agora