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  Eu lhe falei de Soraya, do subsolo, do que ela sofrera no passado, de sua
agonia atual. E me fez muito bem evocar seu relato, enfim, a um ouvido
benevolente. Durante toda minha pesquisa, eu pensava nela o tempo todo.
Mohammed al-Alagi ouvia, sacudindo a cabeça. Não duvidou nem por um instante
do que eu lhe contava. E considerou muito valioso o fato de ela ter tido forças para
testemunhar.
– Eu queria que se fizesse justiça a cada uma das vítimas de Kadafi – disse ele.
– Seria o mínimo. É preciso que este seja um objetivo do novo regime. Quero que
se realizem levantamentos, auditorias públicas, condenações, reparações. Para ir
adiante, reunir a sociedade e construir um Estado, o povo líbio deve saber o que se
passou durante quarenta e dois anos. Enforcamentos, torturas, sequestros,
assassinatos em massa, crimes sexuais de todo tipo. Ninguém tem ideia do que
sofremos. Não é questão de vingança nem de punição. É mais o caso de uma
catarse.
É claro que seria complicado. E ele não negava que seria. Faltavam meios,
estruturas, coordenação. O governo ignorava o número exato de locais de
detenção; a maioria das prisões estava nas mãos das milícias armadas; o sistema
judiciário estava longe de possuir condições estáveis. Mas era preciso impor uma
exigência de transparência, e nenhum crime deixaria de ter sobre si um facho de
luz.
Estava ficando muito tarde. Ele tinha de ir. Pronunciei a palavra "escrava" ao
me referir a Soraya e ele se enfureceu.
– Kadafi fez de todos nós escravos! Regurgitou sobre seu povo todos os seus
sofrimentos passados, destruindo nossa cultura, varrendo nossa história, impondo a
Trípoli o nada do deserto! Alguns ocidentais ficam boquiabertos diante do que ele
chamava de cultura, ao passo que ele desprezava o saber e o conhecimento. Ele
tinha que ser o centro do universo! Sim, ele corrompeu a sociedade líbia, fazendo
da população vítima e cúmplice ao mesmo tempo, e transformando seus ministros
em marionetes e zumbis. Sim, na Líbia o sexo foi um meio de poder: "Você trate de
baixar a cabeça e me obedecer, ou violento você, sua mulher e seus filhos". E ele
fazia isso, condenando todo mundo ao silêncio. Antes de ser arma de guerra, o
estupro foi uma arma política.
Como ele destoava dos políticos que eu tinha tido a possibilidade de encontrar!
E pelo menos ele não tinha medo de ser citado, ao contrário da maioria dos meus
interlocutores. Abordamos então o terreno minado dos estupros perpetrados pelas
tropas de Kadafi durante a revolução. Tinham ocorrido, e aos milhares. Em todas
as cidades ocupadas pelas milícias e por mercenários do ditador. E da mesma
forma em suas prisões. Estupros coletivos, cometidos por homens alcoolizados,
geralmente drogados, filmados por celulares. A Corte Penal Internacional, que em
junho de 2011 expediu um mandado de prisão contra o ditador, logo denunciou a
existência dessa política sistemática de estupros, mas era muito difícil reunir
provas, e não havia como encontrar as vítimas. As mulheres não falavam. Médicos,
psicólogos, advogados, associações femininas, na tentativa de ajudar, provocavam
um mal ainda maior. E elas se afundavam, curvando-se sobre sua própria vergonha
e dor. Algumas preferiram fugir. Outras foram caçadas pela própria família. Outras
ainda se casaram com rebeldes que se ofereceram para salvar a honra daquelas
"vítimas de guerra". Algumas delas, raras, como vim a saber, foram mortas pelos
próprios irmãos, que se sentiram ultrajados. Por fim, durante os meses de inverno,
algumas deram à luz, envoltas no maior segredo. E em imenso desespero.
Graças a uma rede de mulheres devotadas, eficazes e, podemos dizer,
discretas, pude encontrar algumas dessas mulheres profundamente traumatizadas
e assistir, no hospital, a adoções de bebês gerados por estupros. Momentos
inesquecíveis nos quais a criança, em segundos, muda de mãos. E de destino. E em
que a mãe – muitas vezes adolescente – vai embora. Aliviada. Mas para sempre
atormentada. Em uma prisão de Misrata, entrevistei também estupradores. Dois
pobres sujeitos, de vinte e dois e vinte e nove anos, alistados nas tropas de Kadafi,
que estremeciam, com o olhar fugidio, ao contar em detalhes seu crime. Era uma
ordem, disseram. Eles recebiam umas "pílulas que nos deixavam doidos",
aguardente e haxixe. E seus chefes os ameaçavam.
– Às vezes se estuprava a família inteira. Meninas de oito, nove anos, garotas
de vinte anos, a mãe delas, às vezes na frente do avô. Elas urravam, e a gente
fazia com violência. Ainda posso ouvir os gritos. Não dá nem pra contar o
sofrimento delas! Mas o chefe da brigada insistia: estupra, espanca, filma! E
mandava aquilo para os homens dele. Aqueles estúpidos sabiam como humilhar!
O primeiro amaldiçoava Kadafi e suplicava que não revelassem à sua mãe do
que o acusavam. O segundo, lamurioso, dizia-se corroído pelo remorso e que não
tinha sossego em momento algum. Lia o Corão e orava dia e noite, havia
denunciado todos os seus chefes e se dizia pronto para receber qualquer punição,
até mesmo a morte.
– A ordem vinha muito de cima – confirmou-me Mohammed al-Alagi. – Lá em
cima, temos os testemunhos dos mais próximos de Kadafi. Eu próprio ouvi seu
antigo ministro das Relações Exteriores, Mussa Kussa, afirmar tê-lo visto ordenar
aos chefes kataebs: "Primeiro estupra, depois mata". Era coerente com seu hábito
de governar e destruir pelo sexo.
Seriam necessárias mais provas de que se tratava de estratégia? De
premeditação? Pois elas existiam. Centenas de caixas de Viagra haviam sido
encontradas em Benghazi, Misrata, Zuara e mesmo nas montanhas.
– Estavam por toda parte em que suas milícias estiveram estacionadas. E
descobrimos contratos comerciais pré-pagos e assinados pelo Estado líbio... Arma
de guerra, posso afirmar!
Por vezes, Muamar Kadafi sonhou ser escritor, chegando a publicar, em 1993 e
1994, dezesseis romances cheios de devaneios líricos e clichês remetendo à morte
e ao encantamento, além de pensamentos delirantes.
– Refletiam seus sofrimentos – lembrou Mohammed al-Alagi, o medo da
multidão tendo sido confessado em seu Escapada no inferno, de conteúdo
altamente premonitório.
Essas turbas inclementes, mesmo diante de seus salvadores, sinto que me perseguem [...]. Como são
afetuosas nos momentos de alegria, quando carregam os filhos nos ombros! Levaram Aníbal e Péricles [...],
Savonarola, Danton e Robespierre [...], Mussolini e Nixon. E como são cruéis nos momentos de cólera!
Conspiraram contra Aníbal e fizeram-no beber veneno, queimaram Savonarola na fogueira [...] enviaram
Danton para o cadafalso [...] fraturaram o maxilar de Robespierre, seu tão amado orador, arrastaram o
corpo de Mussolini pelas ruas, cuspiram na figura de Nixon quando este deixou a Casa Branca, tendo ali
chegado sob aplausos!  

No Harém De KadafiOnde histórias criam vida. Descubra agora