O RELATO DE SORAYA

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  1 Infância

Nasci em Marag, povoado da região de Jebel Akhdar, a montanha Verde, não
muito distante da fronteira com o Egito. Era 17 de fevereiro de 1989. Sim, 17 de
fevereiro! Para os líbios, é impossível ignorar essa data: foi o dia em que eclodiu a
revolução que tirou Kadafi do poder, em 2011. Em outras palavras, um dia
destinado a virar feriado nacional, ideia que muito me agrada.
Três irmãos vieram antes de mim, e outros dois nasceram depois, assim como
uma irmãzinha. Mas eu fui a primeira menina, e meu pai exultava de alegria. Ele
queria uma menina. Queria uma Soraya. Tinha esse nome em mente bem antes de
se casar com minha mãe. Ele me falou muitas vezes de sua emoção no momento
em que veio me ver. "Você era bonita! Muito bonita!", sempre dizia. E ficara tão
feliz que, no meu sétimo dia de vida, na celebração que se costuma organizar após
os nascimentos, ele fez uma festança, como uma festa de casamento. Convidados
encheram a casa, tinha música, um grande bufê... Queria tudo para a filha, as
mesmas oportunidades, os mesmos direitos que os filhos teriam. Certa vez chegou
a me dizer que sonhava em ter uma filha médica. Tanto é verdade que no colégio
fez com que eu me matriculasse em ciências naturais. Se minha vida tivesse
seguido o curso normal, talvez eu tivesse mesmo estudado medicina. Quem sabe?
Mas que ninguém venha me falar em igualdade de direitos com meus irmãos. Ah,
isso não! Que nenhuma moça líbia acredite nessa ficção. Basta ver como minha
mãe, por mais moderna que seja, acabou por renunciar à maior parte de seus
sonhos.
E ela tinha sonhos enormes. E todos se frustraram. Ela nasceu no Marrocos,
terra da avó que tanto adorava. Mas seus pais eram tunisianos. Ela tinha bastante
liberdade, visto que quando nova fez estágio em um salão de beleza em Paris. Isso
é que é sonho, não? Foi ali que conheceu meu pai, em um grande jantar numa
noite do Ramadã. Ele trabalhava na embaixada da Líbia e também adorava Paris. A
atmosfera era tão leve, tão alegre em comparação com o clima de opressão na
Líbia. Ele até pôde fazer cursos na Aliança Francesa, como lhe propuseram, mas
era muito ansioso e preferia sair, passear, aproveitar cada minuto de liberdade, ver
tudo o que era possível. Hoje ele se arrepende de não saber falar francês. Isso sem
dúvida teria mudado nossa vida. Em todo caso, quando ele conheceu mamãe, não
teve dúvida. Pediu a mão dela em casamento, que ocorreu em Fez, onde ainda
morava a avó dela. E então o que aconteceu? Ele a levou de volta, todo orgulhoso,
para a Líbia.
Que choque foi para a minha mãe! Ela jamais imaginara viver na Idade Média.
Ela que era tão vaidosa, tão preocupada em andar na moda, bem penteada,
maquiada, teve de se esconder atrás de um tradicional véu branco e limitar ao
máximo suas saídas de casa. Ficou feito um leão enjaulado. Ela, que sempre se
sentira solta, de repente se viu amarrada. De forma nenhuma aquela era a vida
que papai a fizera imaginar. Ele havia falado em viagens entre a França e a Líbia,
de seu trabalho, que ele poderia realizar alternando entre os dois países... E foi
assim que, em questão de dias, ela foi parar no país dos beduínos. Entrou em
depressão. Então papai fez de tudo para se mudar com a família para Benghazi, a
segunda maior cidade da Líbia, no leste do país. Uma cidade provinciana, mas
sempre considerada um pouco rebelde em relação a Trípoli, onde o poder estava
instalado. Ele não podia levá-la a Paris, para onde continuava viajando com
frequência, mas pelo menos ela estaria morando em uma cidade grande, não
precisaria usar o véu e poderia até trabalhar como cabeleireira num salão que
abriria em casa. Como se isso fosse consolá-la...
Ela continuou deprimida e sonhando com Paris. Contava para nós, seus filhos,
dos passeios pela Champs-Elysées, dos chás com as amigas no terraço dos cafés,
da liberdade dos franceses. Falava também da proteção social, dos direitos dos
sindicatos, de como a imprensa podia ser audaciosa. Paris, Paris, Paris... Isso
acabou nos fazendo mal, mas por culpa do meu pai. Ele tinha a ideia de abrir um
pequeno negócio em Paris, um restaurante no 15o arrondissement, que mamãe
poderia tocar. Acontece que ele logo brigou com o sócio, e o plano foi por água
abaixo. Também deixou de comprar um apartamento na Défense. Na época,
custava vinte e cinco mil dólares. Faltou-lhe coragem, e até hoje se lamenta por
isso.
São, portanto, de Benghazi minhas primeiras lembranças da escola. Elas estão
um pouco confusas na memória, mas lembro que foi um tempo muito feliz. A escola
se chamava Os Leõezinhos da Revolução, e eu tinha quatro amigas inseparáveis.
Eu era a palhaça do grupo, minha especialidade era imitar os professores quando  eles deixavam a sala, ou fazer macaquices atrás do diretor. Acho que tenho um

dom para captar o gestual e as expressões alheias. Juntas, chorávamos de tanto
rir. Eu podia tirar zero em matemática, mas era a melhor em língua árabe.
Papai não ganhava bem. E o trabalho de mamãe se tornou indispensável. Era
ela quem acabava arcando com as contas da família. Ralava dia e noite, sempre à
espera de algo que nos levasse para bem longe da Líbia. Eu sabia que ela era
diferente das outras mães, e por isso começaram a me tratar com desprezo na
escola – eu era "a filha da tunisiana". Isso me magoava. Os tunisianos eram tidos
como modernos, emancipados, e em Benghazi, acredite se quiser, essas qualidades
não eram bem-vistas. E eu, tola, me senti depreciada. Desejava que meu pai
tivesse escolhido como esposa alguém do próprio país. Por que foi se casar logo
com uma estrangeira? Não pensou nos filhos? Meu Deus, como eu era idiota!
Quando eu estava com onze anos, papai anunciou que nos mudaríamos para
Sirte, cidade também da costa mediterrânea, entre Benghazi e Trípoli. Ele queria
se aproximar do berço familiar, de seu pai – um homem muito tradicional, que
tinha quatro esposas –, de seus irmãos e primos. Na Líbia é assim: as famílias
procuram formar grupos em torno do mesmo bastião, que supostamente lhes dará
força e sustentação incondicionais. Em Benghazi, sem raízes nem relações, éramos
como órfãos. Pelo menos foi assim que papai nos explicou. Mas para mim a notícia
foi uma catástrofe. Deixar a escola? Minhas amigas? Que drama! Fiquei doente.
Doente de verdade. De cama por duas semanas. Incapaz de me levantar para ir à
nova escola.
E então finalmente eu fui. Com o coração apertado. E logo percebendo que não
seria feliz. Antes de tudo, tenho de dizer que aquela era a cidade natal de Kadafi.
Ainda não falei da figura porque não se tratava de uma preocupação nem de tema
de conversa em casa. Mamãe nitidamente o detestava. Mudava de canal sempre
que ele aparecia na TV, referia-se a ele como "o descabelado" e repetia, sacudindo
a cabeça: "Francamente, esse tipo lá tem cara de presidente?" Papai, penso eu,
tinha medo e se mantinha mais reservado. Intuitivamente, todos nós percebíamos
que, quanto menos se falasse dele, melhor seria; o menor assunto que saísse do
núcleo familiar poderia passar de boca em boca e nos trazer grandes problemas.
Sem fotos dele em casa e sobretudo sem militância. Digamos que, por instinto, éramos todos cautelosos.  

No Harém De KadafiOnde histórias criam vida. Descubra agora