10 Engrenagem

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  Não havia ninguém me esperando no aeroporto de Trípoli. Eu estava preparada
para o que quer que fosse. Nenhum conhecido no grande saguão de desembarque.
Nenhum olhar suspeito de soldados e policiais. Eu voltava incógnita. Talvez Bab alAzizia tivesse relaxado a guarda.
Telefonei para Hicham. Ele ficou perplexo.
– Você está aqui? Na Líbia? Fique onde está. Estou indo até aí agora!
Ele chegou rapidamente em uma caminhonete com dois amigos. Desceu
sorrindo e pegou minha mala. Ter grandes arroubos ou nos abraçar em público
estava fora de questão. Ele encorpara um pouco, parecia ligeiramente mais velho
do que em minha lembrança, o que lhe conferia um ar ainda mais reconfortante.
Fomos para o mesmo bangalô que um de seus amigos já nos emprestara e nos
explicamos um ao outro. Ele disse palavras duras para expressar sua decepção com
a ideia de que pude morar com um homem em Paris.
– Era só um amigo! – insisti.
– Não existe amizade entre homem e mulher!
Aí está! Tipicamente líbio! Então ele me contou que o pessoal de Bab al-Azizia
fora procurá-lo na casa de seus pais. Que haviam prendido seu irmão enquanto
Hicham estava na Tunísia, de viagem. Que fora alvo de todo tipo de assédio:
ameaças de morte, telefone grampeado, perseguição. Fora denunciado no
trabalho, e nossa história, amplamente alardeada, havia lhe rendido o título de
"amante de uma puta de Kadafi". Mesmo seus amigos mais próximos lhe diziam:
"Você não pode se casar com uma mundana!"
Então tive medo. E meus pais? O que eles teriam suportado? Que pressões, que
ameaças e punições? Eu os negligenciara, ocupada demais com minha própria
sobrevivência. Mas de que modo o Guia os teria feito pagar por terem me deixado
fugir? Queria vê-los o quanto antes.
– Me leve de volta ao aeroporto – disse a Hicham. – Vou telefonar para a casa
de meus pais dizendo que acabei de desembarcar.
Fizemos o caminho em silêncio. Vez ou outra ele me lançava olhares
inconsoláveis. Eu estava perdida em pensamentos. Como imaginar que Bab alAzizia nunca nos deixaria em paz? Liguei para meus pais, eles ficaram chocados
com meu retorno inesperado, e fiquei sentada no saguão do aeroporto esperando
por eles. Foi então que acabei trombando com Amal G., que estava de partida para
a Tunísia com sua irmã mais velha.
– Soraya! Mas que surpresa! Pra onde você vai? Ouvi dizer que estava em Paris.
– Não, de maneira nenhuma.
– Não minta! Dei uma pesquisada. Encontrei Hicham, e um amigo no aeroporto
me contou como você saiu.
– Agradeço pela solidariedade!
– Engano seu. Não contei nada pra ninguém. Mas você pode imaginar como
Mabruka e Muamar estão loucos de raiva...
Papai chegou com minha irmã, que eu não via fazia muito tempo. Ele confirmou
que Bab al-Azizia fora me procurar com insistência e exercera todo tipo de pressão
para que ele me achasse. Mas não disse mais nada. Minha irmã – teoricamente –
não devia saber de nada, e ele se preocupava principalmente com o que eu diria a
meu irmão Aziz, que acabara de chegar da Inglaterra. Era preciso cuidar sobretudo
para não cometer nenhuma gafe – para todo mundo, eu tinha voltado de uma
longa estada na Tunísia, com meus tios e tias.
Quando nos vimos a sós, ele extravasou sua ira e amargura.
– Por que você voltou? Por que veio se lançar justamente na goela do lobo? Por
quê, Soraya? Corri todos os riscos, e com prazer. Estava pronto para morrer, para
que você se salvasse. Mas aqui não tem nada que eu possa fazer para proteger
você. Nada, e isso me deixa louco! Eu consegui fazer com que você fosse para um
país livre, e você jogou sua chance fora! É loucura voltar pra Líbia! Loucura se
expor aos absurdos de Bab al-Azizia!
Na manhã seguinte, bem cedo, tomamos o caminho para Sirte. Eram quatro ou
cinco horas de carro, e quase não nos falamos. Meu pai, eu podia ver, continuava
bravo. Encontramos mamãe em seu salão de beleza, e ela me tomou nos braços.
– Você emagreceu. Está tão bonita... – Ela me olhou recuando um pouco,
minhas mãos nas suas. – E um pouco bronzeada demais!
Não lhe contei que a nova cor era resultado do bronzeamento artificial que
Warda me pressionara a fazer, pouco antes de voltar. Eu sabia que Hicham não
aprovara minha nova tez "de africana".
– Você continua trabalhando duro, mamãe! Batalha o tempo inteiro. Por que
não para um pouco? Parece tão cansada.
– Mas em que mundo você vive, Soraya? Como vou sustentar a família? Como é
que você ia receber dinheiro em Paris se eu não tivesse este salão?
Eu mal havia deixado minha mala em nosso apartamento na Rua Dubai quando
o número de Mabruka apareceu no visor do meu celular. Foi como receber uma
punhalada. Ignorei a chamada. Mas ela ligou uma segunda e uma terceira vez.
Entrei em pânico. Tive a impressão de que ela estava ali. Acabei atendendo.
– Alô?
– Bom dia, princesa!
– ...
– Então, quer dizer que fez um pequeno tour pela França?
– Quem disse que eu estive na França?
– Esqueceu que somos o Estado? Nossos serviços sabem tudo de você. Venha
imediatamente ver seu mestre!
– Estou em Sirte.
– Mentira! Nós te procuramos em Sirte!
– Agora eu estou em Sirte.
– Muito bem. Estaremos aí na semana que vem com seu mestre. E pode ter
certeza de que ele vai encontrar você.
Alguns dias depois, ela telefonou de novo.
– Onde você está?
– No salão de beleza da minha mãe.
– Estou indo aí.
Eu estava sendo caçada. Foi o tempo de dizer algo a mamãe, consternada, e
Mabruka chamou:
– Estou aqui. Saia imediatamente!
O carro estava parado diante do salão, a porta da frente aberta. Entrei. O
motorista arrancou a toda velocidade. O pesadelo se repetia. Eu sabia para onde
estávamos indo. Só não sabia ao certo o que me esperava. Mas o que mais eu
poderia fazer se não quisesse que toda minha família pagasse um preço tão alto?
Salma me recebeu com um sorriso cheio de desprezo. E Fathia me pegou pelo
braço.
– Vamos logo para o laboratório. Checkup completo.
Eu não oferecia resistência, não protestava, minha pulsão de vida estava
aniquilada. Eu me tornara um autômato. Fizeram-me esperar de duas a três horas.
Depois Salma disparou:
– Suba para o seu mestre!
Ele usava um conjunto de moletom vermelho, os cabelos desgrenhados, o olhar
satânico. E urrou:
– Vem, vadia.
Passei o resto da noite no que já tinha sido meu quarto, ao lado de Farida. Eu
estava machucada em todo o corpo, sangrava, estava execrável. Odiava-me por ter
voltado à Líbia. Na França, eu tinha sido um fracasso. Não soubera me virar,
encontrar as pessoas certas, arranjar um emprego. Era como se, desde meu
primeiro dia na Champs-Elysées, tivessem me tomado por uma garota fácil,
mulher-objeto, por uma vadia, como dizia Kadafi. Era como se esse rótulo estivesse
colado à minha testa. Farida começou a tripudiar e a me dar nos nervos.
– Conheço outras garotas que foram para o exterior trabalhar como putas – ela
dizia. – Gentinha! Sem honra nem fidelidade, sem valor nem postura. Garotas da
sarjeta que voltam para o papai de cabeça baixa...
Eu surtei. Voei para cima dela, a sacudi e a esmurrei com ódio. Eu estava num
estado de fúria como até então não conhecia. Descontrolada, explodindo de raiva.
Mabruka apareceu e tentou nos separar. Mas eu estava como uma leoa que não
larga sua presa. Estava completamente agarrada a Farida, que chorava de pavor.
Mabruka elevou a voz e tentou nos desvencilhar. Eu urrei:
– Você aí, cala essa boca!
Ela ficou petrificada. Ninguém jamais falara assim com ela. Todas as garotas se
faziam de boazinhas na frente da grande chefe. Salma, que acorreu rapidamente,
deu-me um tapa que me ficou marcado no rosto por um bom tempo.
– Quem você pensa que é para ousar falar assim com Mabruka?
Achei que ela tinha deslocado minha cabeça.
Conduziram-me por um labirinto de corredores desconhecidos até um pequeno
quarto, sombrio e repugnante. Não havia janelas nem ar-condicionado, e lá fora a
temperatura devia beirar os quarenta graus. O cheiro de lugar fechado me
sufocava, e percebi que havia baratas ali. Solucei e arranquei os cabelos até não
ter mais força. Então desabei sobre o colchão de palha.  

No Harém De KadafiOnde histórias criam vida. Descubra agora