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  – É mesmo muito injusto. Mas conheço alguém que pode te ajudar: o Guia.
Posso arranjar um encontro com ele, ele vai resolver seu problema!
Kadija ficou estupefata. Será mesmo possível? É verdade que o mestre da Líbia
tem todos os poderes... A mulher a conduz diretamente a Bab al-Azizia, onde um
homem, Saad al-Fallah, logo a encaminha para uma coleta de sangue, feita por
"uma enfermeira de algum país do Leste Europeu", e pede que volte no dia
seguinte.
– Era estranho, mas eu disse a mim mesma que, em se tratando de um chefe
de Estado, nenhuma prudência é demais.
No dia seguinte, Breka, uma guarda-costas uniformizada, a conduz diretamente
ao quarto do Guia. Há muitas pessoas ao redor dele, lhe mostrando fotos tiradas
por ocasião da celebração nacional. Basta elas irem embora para ele dar início a
uma série de investidas insistentes – que ela declina – e então a violentar, sem
dizer uma única palavra.
Quando ela sai do quarto, em estado de choque, Saad al-Fallah não demonstra
nenhuma surpresa e não lhe manifesta nenhum gesto de bondade. Ele lhe estende
um envelope com mil dinares e diz:
– Você tem sorte de ter sido escolhida. Temos a intenção de que trabalhe para
nós.
Ela não quer tirar nenhum proveito, só quer saber de fugir de Bab al-Azizia.
Chega a sair de Trípoli para ficar com a irmã, no sul da Líbia, renunciando às
esperanças de retomar a faculdade, com medo de que a encontrem na casa de
seus pais. Mas a família logo sofre as consequências. O irmão de Kadija, que
estudava em Malta, é preso ao retornar à Líbia, por tráfico de entorpecentes.
Haviam colocado a droga em sua bagagem, ele corria o risco de ser condenado à
morte. E a mesma mulher do salão de beleza telefona para Kadija.
– Você precisa ir ver Muamar. Só ele pode salvar seu irmão.
Kadija entende que se trata de uma chantagem. Volta a Trípoli e aceita se
encontrar com Saad al-Fallah.
– Podemos trocar a condenação à morte de seu irmão por quinze anos de
prisão, só depende de você.
Em contrapartida, Kadija terá de viver em Bab al-Azizia, integrar o grupo das
(falsas) guarda-costas pessoais de Kadafi e render-se a seus desejos. Morta de
medo, ela se muda para o subsolo, mais tarde habitado por Soraya, na companhia
de um grupo de garotas cujo número ela estima, contando só as que moravam ali,
em torno de trinta. Assim como Soraya, ela é chamada a qualquer hora do dia ou
da noite, observa as "entregas" de jovens meninas virgens que não têm ideia das
provações que as esperam, as passagens relâmpago de jovens rapazes, as
tramoias de outras mulheres para conseguir casas, carros, dinheiro.
Mas rapidamente lhe é conferida outra missão: seduzir, numa armadilha, uma
série de dignitários do regime e os homens renomados mais próximos do Guia.
Instalam-na em um apartamento que ela descreve como luxuoso – "cinco estrelas",
segundo ela –, na fortaleza de Bab al-Azizia, repleto de câmeras. É para lá que ela
deve atrair os homens que lhe são designados e com os quais são forjados
encontros, em um cenário invariavelmente sórdido. Ela tem de comprometê-los da
maneira mais grave possível, incitando-os a beber e a fazer sexo com ela. Os filmes
então realizados servirão como instrumento de chantagem à disposição do Guia. Os
nomes, que Kadija enumera com precisão, são estarrecedores e vão do chefe do
serviço de inteligência líbio a este ou àquele ministro, coronel, general ou primo
íntimo de Kadafi. A jovem também conta ter sido enviada a Gana, ao Hotel Golden
Tulip, com a missão de seduzir o embaixador e o contador da embaixada.
Como é comum entre a maior parte dessas "garotas" (Kadija tem o famoso
crachá de identificação), Kadafi um dia lhe atribui autoritariamente um marido
escolhido em seu bando. Ela não tem escolha, mas ao menos ingressará na
comunidade das mulheres casadas, o que a tornará mais respeitável aos olhos da
sociedade líbia e de sua família. Ela espera uma vida nova, nutre a ilusão de um
casamento de verdade e, como dispõe de um pouco de dinheiro, recorre a uma
clínica tunisiana para reconstruir o hímen.
No dia anunciado, enquanto os convidados chegam à casa de sua mãe e as
mãos de Kadija já estão adornadas com hena, o telefone toca. É de Bab al-Azizia.
O Guia exige que ela venha até ele imediatamente. Ela protesta.
– Mas hoje é o dia do meu casamento!
É ameaçada. Era como se perdesse a alma.
– Ele me abriu. Ele tinha de estragar aquele momento. Mostrar que continuava
sendo o mestre.
O casamento não muda nada no negócio.
Em fevereiro de 2011, nos primeiros dias da revolução, Saad al-Fallah vem até
ela com quatro soldados e ordena que faça uma declaração, em cadeia nacional,
afirmando ter sido estuprada pelos rebeldes. Seria o suficiente para lançar uma
bomba. Kadija pertence à poderosa tribo dos Warfalla. E a revelação pública de um
estupro seria um atentado à honra coletiva, causando tal escândalo que implicaria
represálias imediatas e impediria a adesão da maior tribo da Líbia à revolução que
se forma. Mas Kadija compreende muito claramente como aquela falsa confissão a
condenaria aos olhos de todos.
– Minha própria família se encarregaria de me matar!
Ela se recusa. É espancada, violentada e queimada com pontas de cigarro. Um
dos guardas quebra sua tíbia com o salto do coturno, e um médico de Bab al-Azizia
é obrigado a intervir com urgência. Por fim, ela finge aceitar a ordem, com a
condição de lhe permitirem antes se recuperar junto de sua mãe, no bairro de
Tadjura. E nessa noite ela vai burlar a vigilância dos guardas a postos na frente da
casa e escapará de camisola pelos fundos, munida de seu passaporte. Rebeldes
que a encontram na fuga vão ajudá-la a chegar à Tunísia, onde permanecerá
durante toda a revolução.

LEILA

Leila hoje está com quarenta anos e tem a sensação de ser uma sobrevivente.
Casou-se com um primo, que a desposou por amor, cria seus filhos e vive
assombrada pela ideia de que alguém um dia venha a descobrir o segredo
escandaloso que destruiu sua juventude. Foi em prantos que contou sua história.
Jamais a contara a ninguém.
Na adolescência, era colega de escola da sobrinha de um amigo e braço direito
do coronel Kadafi, que ajudara este a tomar o poder por ocasião do golpe de
Estado de 1o de setembro de 1969. Elas militavam juntas no Comitê Revolucionário
e, quando a amiga toma a iniciativa de organizar, para um grupo da escola, um
encontro com o Guia, Leila fica entusiasmada. Um micro-ônibus leva as garotas a
Bab al-Azizia, onde são recebidas em um grande salão no primeiro andar da então
residência do Guia, parcialmente destruída pelo bombardeio americano de 1986.
Muamar Kadafi se mostra carismático e atencioso. Descontraído, parece não ter
pressa e demonstra interesse em cada uma delas, fazendo-lhes perguntas a
respeito da linhagem de sua família, sua tribo, sua região. Ele ri bastante, as jovens estão encantadas.

No Harém De KadafiOnde histórias criam vida. Descubra agora