11 Libertação

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  Em 15 de fevereiro, a população de Benghazi tomou as ruas. Mulheres.
Essencialmente mulheres. Mães, irmãs, esposas de prisioneiros políticos
assassinados em 1996 na prisão de Abu Salim, protestando contra o súbito
encarceramento de seu advogado. A notícia surpreendeu todo mundo, por mais que
eu soubesse que, em Trípoli, muitas pessoas estavam preparando uma
manifestação para 17 de fevereiro, decretado o Dia da Cólera. Era fascinante
aquele ímpeto de exasperação e revolta que eu começava a sentir na população.
Eu não imaginava como aquilo tudo ia terminar, Muamar Kadafi me parecia eterno
e invencível. Mas, com espanto, percebia manifestações cada vez mais numerosas
em desaprovação a seu regime. Escárnios, sarcasmos. O medo continuava, com a
consciência de que ele tinha direito de vida e morte sobre cada um dos líbios. Mas
esse medo era tingido de desprezo e ódio. Que os tripolitanos exprimiam cada vez
mais abertamente.
No dia 16, talvez encorajada pela revolução que germinava, saí de casa.
Tratava-se da minha pequena revolução pessoal. Não me tomavam por mundana?
Que fosse, então. Eu ia botar lenha na fogueira. Deixava minha família para viver
com um rapaz, o que é não só inconcebível, mas ilegal na Líbia, país em que toda
relação sexual fora do casamento é estritamente proibida. Mas que me importava a
lei após sofrer tantas violações justamente por parte daquele que deveria encarná-
la? Ousariam me condenar por querer viver com o homem que eu amava, enquanto
o mestre da Líbia me sequestrara e estuprara por anos a fio?
Hicham e eu nos instalamos em um pequeno bangalô que ele próprio construíra
em Enzara, na periferia de Trípoli. Ele trabalhava para um pescador como
mergulhador encarregado de capturar polvos e lulas. Eu preparava as refeições e o
esperava. Para mim, melhor impossível. Eu queria assistir à grande manifestação
de 17 de fevereiro, mas vivíamos longe dos acontecimentos. Coloquei-me diante da
televisão e fiquei assistindo às imagens da revolta transmitidas pela Al Jazeera. Eu
vibrava! Que movimentação! Que audácia! Os líbios se rebelavam. A Líbia se
revelava. Finalmente! Apaguei de meu telefone todos os números de Bab al-Azizia.
Eles estavam bem ocupados com outras urgências, não me procurariam mais.
Graças a contatos que tinha no tribunal de Trípoli, Hicham conseguiu que
assinássemos, secretamente, um contrato de casamento. Não teve festa nem
comunicado a nossos pais; de qualquer forma, jamais teríamos o consentimento
deles. Mas aquilo me deu certa segurança, ainda que mais tarde eu viesse a
descobrir que o documento não tinha nenhum valor jurídico.
Um dia, a Al Jazeera transmitiu imagens de uma jovem, Iman al-Obeidi,
irrompendo no restaurante de um luxuoso hotel de Trípoli no qual se hospedava a
imprensa internacional. Aos gritos, ela dizia ter sido estuprada pelos milicianos de
Kadafi. Era uma cena inédita. Todos a viram bradar sua história aos quatro ventos,
enquanto os homens da segurança ou do protocolo corriam para fazê-la se calar.
Mas ela continuava, chorava, se debatia. Jornalistas tentaram intervir, mas ela
finalmente foi levada à força, deixando o mundo todo chocado. Sua coragem me
deixou embasbacada. Certamente a fariam passar por louca. Ou por prostituta. Mas
ela erguera o véu que cobria a história de milhares de mulheres, pois em momento
nenhum duvidei de que as tropas de Kadafi pudessem estuprar, à imagem e
semelhança de seu mestre.
Amigos de Hicham lhe disseram que Bab al-Azizia, por precaução, tentara
"fazer a limpeza", querendo eliminar as "garotas", testemunhas que haviam se
tornado incômodas e irrecuperáveis. Também fiquei sabendo que homens armados
a mando de Kadafi – os famosos kataebs – haviam ido me buscar em casa,
proferindo ameaças a meus pais. Com medo, mamãe foi se refugiar no Marrocos.
Duramente interrogado, papai disse que eu fora com ela.
– Pois faça com que volte! – ordenaram.
Os kataebs tinham feito uma busca também na casa dos pais de Hicham.
– Onde está Soraya?
A família disse que não me conhecia, mas Hicham foi convocado a se
apresentar na delegacia do bairro.
– Vou levar você à Tunísia – ele me disse. – Não devemos esperar nem mais
um dia.
Ele me confiou a um amigo que conduzia uma ambulância, e foi assim que
cruzei a fronteira para me juntar às minhas primas tunisianas. De lá, eu
acompanhava, dia a dia, as notícias da Líbia. Os ataques da OTAN, o avanço dos
rebeldes, a selvageria de uma verdadeira guerra. Eu vivia em angústia. Queria
voltar para a Líbia. Hicham me proibira terminantemente. Ele temia que os
rebeldes me tomassem por cúmplice do bando de Kadafi, por um membro do
primeiro círculo, com tudo que isso implicava quanto a suspeitas de corrupção e de
indignidade. Essa ideia me pareceu bizarra. Eu, cúmplice? Logo eu, que havia sido
sequestrada e escravizada? Logo eu, cuja única esperança de poder corrigir o curso
de minha vida residia em ver Kadafi deposto e enfim julgado pelo que me fizera?
Ao telefone, eu me exaltava com Hicham, dizendo que seus temores eram
absurdos, chegando a ser insultantes. Era o cúmulo que alguém pudesse me
associar às hostes de meu algoz! Depois ouvi rumores de que Najah e Farida
haviam sido assassinadas. E de repente senti medo.
No mês de agosto, quando se iniciava o Ramadã, fiquei sabendo que uma
vidente havia anunciado a morte de Kadafi e a libertação de Trípoli para o dia 20.
Então, eu voltei. Encontrei Hicham em seu pequeno bangalô, mas era impossível
ficar ali. Não havia água, nem gás, nem eletricidade, nem gasolina. Os ataques da
OTAN continuavam. Era o caos. Em 8 de agosto, um grupo de kadafistas veio pedir a
Hicham que participasse, juntamente com seu irmão, de uma operação noturna
perto de Zauia. Creio que se tratava de evacuar uma família de barco, mas
confesso não ter entendido os detalhes. Talvez ele não quisesse me preocupar.
Parecia contrariado, mas tive a impressão de que ele não tinha escolha. Numa
noite, ele partiu. E nunca mais voltou.
Telefonaram-me para contar que um ataque da OTAN atingira sua embarcação.
Muito abalada com a notícia, fui correndo até a mãe de Hicham. Ela chorava e me
tomou nos braços. Mas Deus sabe quanto desaprovava nossa relação. Fiz
perguntas a ela, que não sabia nada que eu já não soubesse. As informações eram
contraditórias, parciais. Tudo que sabíamos era que Hicham fora dado como morto.
Seu irmão nadara por nove horas para chegar à costa e estava são e salvo,
escapando apenas com ferimentos nas pernas, mas não pôde esclarecer muita
coisa. Hicham desaparecera e deveríamos considerá-lo morto, ainda que seu corpo
não tivesse sido encontrado, ao contrário dos outros. Fizemos um funeral para ele.
Eu estava destruída.
E depois, em 23 de agosto, veio a libertação de Trípoli. A população nas ruas
estava aturdida, eufórica e aliviada. As mulheres saíam com os filhos, ostentando
com orgulho as cores de nossa nova bandeira. Os homens se abraçavam,
dançavam, atiravam para o alto com suas AK-47 e festejavam: "Alá Akbar!" Alto-
falantes transmitiam por toda parte cantos e hinos da revolução. Os rebeldes,
extenuados e felizes, eram recebidos como verdadeiros heróis. Tinham aberto as
prisões e tomado Bab al-Azizia de assalto! Aquilo era inimaginável. Eu vociferava,
aplaudia os comboios e agradecia a Deus por aquele que ficaria marcado como o
dia mais importante da história da Líbia. No entanto, eu chorava por dentro.
Sentia-me esgotada e perdida. Hicham não estava ali.  

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